Comunidade internacional de apoio à agricultura cria modelo de economia de partilha que garante escoamento de alimentos biodinâmicos e agroecológicos
Garantir um futuro sustentável e seguro a empreendimentos da agricultura familiar. Este é um dos objetivos de uma CSA, Comunidade que Sustenta a Agricultura. O grupo trabalha com a chamada 'economia de partilha' ou 'economia de suporte comunitário'. Funciona assim: um grupo de consumidores se compromete a cobrir, por um período de tempo previamente acordado, o orçamento anual de um organismo agrícola (sítio, chácara, fazenda, lote urbano agricultável, etc). Em contrapartida, os consumidores recebem os alimentos cultivados pelo sítio ou fazenda sem custos adicionais. Assim, os agricultores podem se dedicar de forma livre ao cultivo, sem a pressão do mercado e do preço. E os consumidores, que passam a ser chamados de co-agricultores, recebem alimentos sustentáveis, que não recebem agrotóxicos e não prejudicam o meio ambiente e ainda conhecem quem os cultiva e o local onde são cultivados.
As metodologias mais utilizadas pelos membros da comunidade são a agrofloresta e a biodinâmica. Este formato é reproduzido em vários países e chegou ao Brasil em 2011 com uma entidade nacional. Atualmente existem cerca de duzentas iniciativas no País. A CSA Brasil é uma organização sem fins lucrativos que fomenta a criação de novas CSAs e fortalece o vínculo entre as existentes. A entrevista de hoje, que é parte da rede Conexão Solo Vivo, é com o Presidente da Associação Comunitária CSA Brasil, Daniel Pestana Mota, que também é pedagogo e advogado.
-A CSA é uma comunidade mundial, quando ela chegou no Brasil e como se espalhou pelo País?
D.P.M: "O movimento das CSAs está em todos os continentes, e isso é um bom sinal! No Brasil, houve uma iniciativa em Fortaleza, por volta de 1997, mais ligada ao desenvolvimento da agropecuária orgânica, e não tanto em relação à uma mudança de paradigma na questão da economia, como é a filosofia das CSAs, hoje. Mas foi lá no Ceará o primeiro registro de uma parceria entre consumidores e produtores. Mais tarde, no Bairro Demétria, em Botucatu, surgiu a CSA Demétria, fundamentada nos ensinamentos do filósofo austríaco Rudolf Steiner, que também desenvolveu a pedagogia Waldorf, a agricultura biodinâmica, a economia associativa, dentre outras iniciativas fundadas na antroposofia. Esta sim balizou não apenas o impulso das CSAs com mais enfoque na economia, mas também deu o pontapé inicial para o surgimento da Associação Comunitária CSA BRASIL".
-Como funciona esta comunidade?
D.P.M: "Um grupo de pessoas se reúne com uma ou mais pessoas que carregam a expertise, o "dom" de cultivar a terra (no sentido da habilidade mesmo). Juntos, levantam os custos necessários à viabilização da própria agricultura, incluídas as necessidades materiais destes que cultivam o solo. Aí então esse grupo de pessoas garante a sustentação necessária para o cultivo de alimentos. Em troca, são fornecidas cotas periódicas daquilo que é cultivado (a palavra cultivo substituiu o termo produção). Tudo por meio de compromissos firmados conscientemente por períodos predeterminados, com avaliação conjunta tanto no decorrer destes períodos como ao final dos mesmos (os chamados dias de campo), visando novos compromissos. O que está no centro desta relação não são as leis básicas da economia, mas o princípio da fraternidade econômica. Por isso, quando se divide os custos daquele organismo agrícola (é assim que se chama o espaço agrícola numa CSA) pouco importa a relação oferta x procura. O que confere valor a esta relação é a disposição consciente da partilha, a vontade de não apenas financiar um plantio, mas de garantir a existência saudável da própria agricultura".
-Como se dá a gestão compartilhada?
D.P.M: "Numa CSA a gestão é partilhada entre quem cultiva e quem sustenta esse cultivo. As próprias pessoas criam um grupo menor, responsável pela facilitação deste processo, que recebe o nome de grupo coração, como se fosse mesmo o coração, o órgão que media a relação entre a parte cognitiva (pensar) e a parte metabólica (fazer), numa analogia com o ser humano na visão da antroposofia".
-A CSA promove uma atuação conjunta com os chamados 'agricultores ativos' e 'agricultores passivos ou co-agricultores', para o cultivo de alimentos. Qual é a diferença entre eles e qual é o papel que cada tipo executa?
D.P.M: "Já não falamos mais em produtores. Falamos de agricultores, de cultivadores, aqueles que garantem a cultura do cultivo da terra, a 'agri-cultura' (na acepção mais expressiva possível!). E do outro lado, as pessoas se tornam co-agricultoras, e não mais meros consumidores, se interessando de perto pela terra, pelas condições de vida dos agricultores e pela própria filosofia que está na base desta relação. Enquanto os agricultores praticam com segurança aquilo que representa a sua habilidade (cultivar e cuidar da terra), os co-agricultores oferecem sua disposição fraterna, sincera e consciente em sustentar essa prática. Temos, aliás, cerca de 10 princípios, 'guarda-chuveados' sob o princípio-mór, que é migrar da cultura do preço para a cultura do apreço, que dão sustentação teórica e prática ao movimento".
-Todos os associados têm como referência o método de agrofloresta? Como ele funciona na prática e como são passadas as instruções para que os princípios sejam compartilhados por todos?
D.P.M: "O método não é passado de forma obrigatória, é seguido espontaneamente. Primeiro, porque falamos em cultivo, não em produção. Em agricultores, e não em produtores. A dimensão é qualitativa e não quantitativa! Lembrando que a cultura agrícola, por natureza, carrega a diversidade, sobretudo quando falamos em agricultura familiar, que responde majoritariamente pelos alimentos que estão na nossa mesa diariamente. E no cultivo da diversidade há também um controle natural, um equilíbrio espontâneo, e por isso é quase que natural a relação de uma CSA com a agroecologia, com os princípios agroflorestais, e também como a agricultura chamada biodinâmica, que concebe a agricultura na sua máxima expressão e conexão com tudo o que é vivo e existe no planeta. Não se cultiva olhando pro PIB, mas pra necessidade de manter viva uma cultura onde um se ocupa com o outro, e ambos olham para a terra não como um pote de ouro, mas como um lugar sagrado que foi nos dado como forma de vida e de amor. Por isso estar numa CSA, de verdade, é se envolver numa mudança de paradigma".
Saiba mais sobre a Agricultura Biodinâmica, que completa cem anos em 2024
-Quantos associados existem hoje no País?
D.P.M: "Como todo movimento é difícil mensurar, oficialmente, o número de iniciativas. O que posso dizer é que as CSAs tem se expandido de maneira livre pelo país, o que dificulta até mesmo o monitoramento a fim de sabermos, com alguma certeza, se aquele grupo pratica uma agricultura de sustentação comunitária tal como concebida ou, muitas vezes é apenas um grupo de compras e ou de cultivo orgânico. Mas essa liberdade é vital para despertar um processo de consciência, tão necessário nestes tempos. De qualquer forma, podemos falar em mais de 200 iniciativas espalhadas pelo país todo, a maioria mapeada pela CSA BRASIL, uma entidade pioneira na missão de fomentar essa filosofia e zelar pela observância dos seus princípios".
-Existem obstáculos para o crescimento da Comunidade no País? Quais são eles?
D.P.M: "O que precisa ser compreendido é que a lógica do crescimento, assim como a lógica do desenvolvimento, muitas vezes traduz-se como um complicador. Mais vale uma comunidade criada e atenta aos princípios do que um grupo que pratica uma compra coletiva e se apresenta como uma CSA, inclusive fazendo uso da sigla, do nome. O maior obstáculo, olhando pra isso, é sair dos extremos, garantindo a liberdade no processo criativo de cada comunidade e ao mesmo tempo focando na necessidade de serem observados esses princípios todos. Só assim poderemos construir algo ao mesmo tempo alternativo e natural, espontâneo mesmo".
-Como você vê o cenário da produção de orgânicos e alimentos de base agroecológica no Brasil nos próximos anos?
D.P.M: "Aí depende. Pela lógica do crescimento, a lógica do PIB, claro que a cada ano o espaço de produção agroecológica também aumenta, não tanto quanto à produção de grãos em sistema de monocultura, uma questão preocupante. O ponto, todavia, é que não basta comer bem! O que o ser humano precisa compreender, e o movimento das CSAs contribui pra isso, é que a maneira tradicional de se praticar a agricultura, e de resto como funciona a economia em geral, é deletéria não apenas ao planeta, mas à esperança de que é possível ocupá-lo sob a premissa da partilha, do respeito e da ética. Se a lógica da acumulação permear a produção de orgânicos, de produtos que sejam agroecológicos, poucas pessoas serão atingidas, sobretudo porque mantidos estarão os princípios usuais da economia, como a lei da oferta e da procura, a concorrência etc. De qualquer forma, percebo que o caminho até chegar numa CSA passa, sem dúvida, pela consciência despertada pela agroecologia e pelo agroflorestamento, já que são uma alternativa à lógica da monocultura, que cada vez mais depende de métodos artificiais para produção de grande volume de alimentos, muitas vezes commodities que sequer chegam à mesa das pessoas".
Rede Conexão Solo Vivo une forças em prol da alimentação sustentável
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.