Chamei mamãe porque precisava de ajuda para ser uma mãe. Tinha deslocado o ombro e minhas filhas precisavam de mais atenção do que eu poderia dar enquanto me recuperava da cirurgia.
Mães servem para isso. Foi mamãe quem me ensinou. Ela me consolava nos momentos de frustração maternal contando como sua mãe a socorria quando se sentia desamparada.
Vovó era o protótipo da paciência: jamais gritava e estava sempre pronta para ajudar, cuidar. Mesmo como bisavó ela dava um jeito de agir como mãe. Quando ela e vovô começaram a passar os invernos na Espanha, conheceu uma pré-adolescente da vizinhança. Fez amizade e ensinava coisas à garota. Em verões futuros, mandou Sara ficar comigo como uma espécie de babá de meus filhos. Assim, cada uma ensinava sua língua à outra e eu tinha uma pessoa para conversar mais que com os gêmeos de 2 anos e o recém-nascido.
A cada verão, vovó nos mandava a garota. Mas, quando cuidar de três bebês e de uma adolescente ficava demais para mim, eu chamava mamãe.
Mamãe me contou da vez que minhas irmãs e eu ficamos tão doentes que o pediatra precisou ser chamado. Foi quando ela percebeu que não ia dar conta: estava gripada, os três filhos tremiam de febre e meu pai vinha tendo alucinações por causa de remédios. Vovó socorreu a família sem perguntas ou queixas. Como mamãe fazia quando eu pedia socorro.
Vovó sempre dizia sim. Foi essa sua escolha quando se tornou mãe: dizer sim a menos que fosse impossível. Quando dizia não, mamãe não questionava: sabia que o motivo era forte
Mamãe dizia que procurava ser metade da mãe que vovó era para ela. E eu digo a minhas filhas que tento ser metade da mãe que minha mãe é para mim.
Chamei mamãe porque precisava de ajuda para ser mãe. O outono tinha sido difícil para ela: minhas irmãs estavam sempre precisando de sua ajuda e vovó estava mais uma vez na Espanha para passar o inverno. Mas mamãe disse sim. Ela sempre procurava dizer sim.
Problemas de saúde e o mau tempo atrasaram sua partida. Ela estava a dois Estados de distância, esperando uma trégua das tempestades de neve e dos vírus para ver como podia ajudar.
Dois dias após minha cirurgia, fui despertada às 3h da manhã por uma voz em pânico, com forte sotaque estrangeiro, no telefone. Era Sara, minha babá/filha adotiva/prima espanhola avisando que vovó havia morrido de ataque cardíaco horas antes. Sara queria que eu avisasse mamãe.
Fiquei olhando atordoada para o telefone. A morte de vovó me parecia impossível, improvável, incompreensível. Enquanto ligava para mamãe, imaginava como iria contar a ela. Atendeu o telefone, sonada, mas tranquila, pronta para confortar uma filha aflita, apesar da hora. Minha vontade era perguntar a ela como lhe dar a notícia. Sabia que responderia que, se havia alguém para ensinar como contar a alguém que sua mãe havia morrido, esse alguém era vovó. Comecei a soluçar.
"Vovó morreu", eu disse. "Sinto muito, muito, muito..."
De início, ela meio que não acreditou. Mas, quando dei detalhes do que acontecera na Espanha, sua voz tornou-se firme e ela saiu do telefone para chamar as filhas menores. Fiquei sofrendo no vazio, dois Estados longe, desorientada e precisando de mamãe.
Precisava dela não porque eu estivesse tão abandonada, mas porque ela estava. Porque com todas minhas forças eu queria ajudá-la, suavizar aquele momento horrível, torná-lo mais aceitável. Cada batida de meu coração pedia para estar perto dela, abraçá-la, tomar suas mãos. Queria dar telefonemas, tomar providências para o traslado, o obituário e tudo que é preciso fazer quando morre alguém de quem se gosta.
O desaparecimento de vovó foi súbito e violento, como se um buraco negro sugasse para o vácuo toda a paciência, paz e compreensão que ela sempre teve conosco. Eu precisava de mamãe porque não podia imaginar quão horrível poderia ser para ela não ter sua mãe naquele momento em que o chão se abria a seus pés.
Pelo mês seguinte, dediquei-me a ser mãe. Garanti que meus filhos comessem, tomassem banho e dormissem. Fiz tudo que podia para mamãe poder viajar e trazer de volta um ente querido através do Atlântico. Tentei ser a melhor filha que podia simplesmente requisitando mamãe o mínimo possível.
Não creio, no entanto, que precisar da mãe faça de você um mau adulto.
Acho que, quanto maior sua carência em momentos como esse, maior é a prova de quanto sua mãe é boa. Se mamãe não fosse tão gentil e dedicada, uma ouvinte tão boa atilada, eu não precisaria tanto ouvir sua voz. Se vovó não tivesse sido tão tolerante, sempre certa do que, como e quando fazer, não seria tão horrível encarar o desconhecido sem ela.
Espero que meus filhos sempre precisem de mim com essa intensidade. Espero ser sempre uma inspiração de amor e aceitação.
Espero que, quando minha mãe morrer, meus filhos sofram não só pela perda deles, mas também por minha perda de filha. Espero que aprendam a me amar como pessoa falível tentando conseguir o impossível - ser metade da mãe que minha mãe é.
Espero que um dia me vejam como hoje vejo mamãe. Como filhos da mãe deles.
Espero que me chamem sempre que precisarem de ajuda, especialmente com os próprios filhos. E espero nessas horas ter sempre força para dizer sim.
* Lea Grover é escritora. Vive em Chicago
Tradução de Roberto Muniz
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