Começou na quinta-feira, 19, a segunda edição do festival Soy Loco Por Ti Juquery, no complexo hospitalar do Juquery, em Franco da Rocha, região metropolitana de São Paulo. O evento gratuito, que vai até domingo, 22, oferece aos pacientes e ao público externo discussões sobre cuidados psicológicos, atividades culturais e oficinas, bem como uma visita guiada pelo lugar - que ainda carrega o estigma de ‘manicômio’ para alguns.
Victor Fisch, diretor artístico do festival, destaca que a ideia é levar novas interações aos usuários do Centro de Atenção Psicossocial (Caps) e aos 57 moradores do centro médico, que estão lá há décadas e perderam os vínculos familiares com o passar do tempo. Todos já são idosos, com média de 61 anos de idade, e foram hospitalizados em uma época cujo modelo de tratamento psiquiátrico era de internações de longa duração. Alguns possuem retardos mentais leves e outros sofrem com problemas mais graves, como a esquizofrenia.
"A questão da saúde mental está presente na programação e, por isso, torna-se fundamental envolver os usuários dos Caps da região de alguma forma", afirma. "Queremos valorizar essa abordagem de cuidado, que tem o respeito, o vínculo e a autonomia [do paciente] como pilares do tratamento de pessoas com transtornos mentais", completa.
As atividades são diversas e para todas as idades. Vão desde workshops de grafite até shows musicais, peças de teatro e rodas de conversa sobre a obra de Osório César, psiquiatra responsável por levar ao complexo a arteterapia nos anos 1920 - técnica que alia a arte à psicologia para analisar o paciente.
De acordo com o diretor do Juquery, Glalco Cyriaco, o festival permite que os pacientes do hospital nutram um contato com o público externo, o que, segundo ele, é importante para o tratamento e a reinserção das pessoas com transtornos mentais na sociedade. Destaca, no entanto, que nenhum interno é obrigado a participar, em respeito à sua autonomia e às condições físicas e psicológicas de cada um.
“Apesar de serem poucas, as atividades que desenvolvemos com eles são treinos sociais nos quais trabalhamos a relação com o mundo exterior. Um ser humano institucionalizado há 30 anos precisa se preparar [para voltar a viver em comunidade]”, defende. “Levamos para o parque, teatro, cinema, restaurante e montamos gincanas e jogos de memória para eles desenvolverem a cognição. Portanto, o Soy Loco Por Ti Juquery vem para reforçar isso”, completa.
A visão de Cyriaco encontra respaldo na Lei da Reforma Psiquiátrica (nº 10.216), aprovada há 18 anos no Brasil. Ela estabelece a necessidade de respeito à dignidade humana de pessoas com transtornos mentais, reconhecendo que o isolamento social pode agravar as condições delas. Assim, o evento traz painéis que desmistificam a visão de que transtornos psicológicos são doenças. Um exemplo disso é a mostra “Não se trata de curar: 133 conselhos”, que ocorre das 16h às 17h do sábado, 21, e a peça Tarô dos Loucos, no mesmo dia (veja aqui a programação completa).
A primeira edição, realizada em 2018, contou com cerca de duas mil pessoas. Para este ano, a expectativa de público é de cinco mil e haverá uma lista de atividades para crianças e adolescentes também aproveitarem.
Festival mostra que o Juquery não é mais um hospício
O hospital do Juquery mudou e está longe de ser uma instalação com quase 20 mil pacientes, como era nos anos 1970 e 80. Desde a reforma psiquiátrica, a unidade passou a não aceitar internações de longa duração em prol do serviço de residência terapêutica, que são casas que promovem a inserção social dos egressos dos leitos manicomiais. Só nos últimos dez anos, o número de pacientes caiu de 200 para 57, e a meta é zerar esse número nos próximos cinco anos, para que o complexo mantenha apenas serviços do Sistema Único de Saúde (SUS).
Assim, o local está em uma gradual desativação, fruto de um plano diretor que prevê que os prédios vazios, arquitetados por Ramos de Azevedo, transformem-se em espaços de educação, cultura, saúde e lazer ao longo do tempo.
“O Soy Loco Por Ti Juquery vem também com esse objetivo. Queremos proporcionar aos internos e à população dos arredores a possibilidade de interagirem com esse espaço”, explica Cypriano. “Para os funcionários, o evento tem o objetivo de trazer um outro olhar sobre a instituição, pois muitos deles ainda enxergam o Juquery de 30 anos atrás e podem pensar que hoje ele está morto. Eles precisam entender que esse espaço continua vivo”, analisa.
Com 121 anos de história, o complexo psiquiátrico foi uma obra central para o povoamento e a urbanização de Franco da Rocha e das cidades vizinhas. Assim, muitos moradores da região têm alguma relação com o hospital, uma vez que por muito tempo gerou empregos e foi referência médica em todo o Brasil.
“Com a desativação, as pessoas foram se afastando desse espaço. Então a ocupação artística as faz entrarem no lugar, tirar foto e se sentirem parte”, acredita Victor Fisch. “Uma menina [que participou da primeira edição] disse que sempre teve vergonha de falar que é de Franco da Rocha, por ser um distrito com presídios e um ‘hospício’. Com o evento, ela passou a enxergar de outra forma, pois apresentamos Franco da Rocha como um espaço de produção de arte e cultura. Isso se torna motivo de orgulho”, avalia.
Dificuldades não impedem contribuições
Não se sabe ainda quando os prédios do Complexo do Juquery serão completamente reativados com iniciativas fixas de educação, cultura, lazer, etc. Afinal, os edifícios precisam de altos investimentos para serem reutilizados: possuem problemas de infraestrutura e, por serem tombados pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico (Condephaat) de São Paulo, estão submetidos a uma série de restrições e regras para a reforma. Atualmente, o museu de arte Osório César está em fase final de restauração.
“Ocupar esse espaço demanda custos que, às vezes, mostram ser mais em conta fazer um prédio novo do que recuperar o antigo. Mas deve-se entender a ressignificação desse espaço como uma política pública importante [para o complexo continuar vivo]. Se for pensar apenas do ponto de vista financeiro, sempre será melhor construir algo novo”, acredita o Victor Fisch.
Entretanto, as dificuldades não impedem que iniciativas nasçam no Juquery, e o festival de cultura é um exemplo disso. No ano passado, artistas que participaram da iniciativa voltaram para fazer novas intervenções, e, em breve, será inaugurada uma exposição fixa da obra da escultora Elisa Bracher. Além disso, o artista Edmar Almeida - residente da primeira edição do evento - dá oficinas de xilogravura para os pacientes psiquiátricos do hospital desde 2018, no projeto Juquery Gráfico, o que leva Fisch a desejar saltos ainda maiores: “O Soy Loco Por ti Juquery gera coisas. E sonho que esse espaço ganhe mais e mais eventos, que seja algo contínuo”.
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* Estagiário sob a supervisão de Charlise Morais
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