Quando trocou de celular e não conseguiu recuperar fotos, vídeos e arquivos de texto, a biomédica esteta Patricia Tagawa, de 26 anos, sentiu que tinha perdido a vida. Se fosse o caso de estar sozinha e perdido o celular, talvez não conseguisse ligar para alguém e pedir ajuda, pois ela não tem qualquer número de telefone decorado ou anotado em papel, nem o de seu marido.
Todos os compromissos no consultório também estão no celular e qualquer dica que ela precise dar aos pacientes fica disponível em abas abertas no navegador para não esquecer. Além disso, ela não desgruda do carregador do aparelho para não correr o risco de ficar sem ele.
Patricia reconhece que depende muito do celular e que esse comportamento pode ser prejudicial. “Me ajuda muito, por exemplo, a não carregar peso de agenda, mas me faz mal porque fico acomodada a ter essa informação rápida sem precisar usar tantos neurônios”, diz a biomédica, que considera ter uma memória “fraquíssima”.
Essa dependência pode gerar um fenômeno chamado amnésia digital, que é a incapacidade de memorizar as informações que acreditamos estar sempre nos dispositivos digitais. É o que sugere uma pesquisa feita em 2015 pela empresa de segurança digital Kaspersky Lab, que colheu dados de seis mil pessoas com 16 anos ou mais em seis países europeus.
Os resultados mostraram que mais da metade das pessoas se lembravam do número de telefone da casa onde moravam quando tinham 10 anos, mas não o dos filhos ou o do escritório. Cerca de um terço não conseguiria ligar nem para o namorado usando apenas a memória.
O neurocientista e pesquisador brasileiro (nasceu na Argentina mas naturalizou-se) Ivan Izquierdo, coordenador do Centro de Memória do Instituto do Cérebro do Rio Grande do Sul, explica que as memórias antigas, de fato, são melhor lembradas. “Isso acontece ou por um motivo sentimental - e quando mais novas, as pessoas têm mais vigor, são mais potentes - ou porque são memórias importantes. Às vezes, naquela época, o telefone em casa tocava muito”, disse em entrevista ao E+.
A neurologista Andréa Frota Bacelar Rego, da Academia Brasileira de Neurologia, diz que o meio digital mudou a forma como aprendemos e exercitamos a memória de curto prazo. “Essa facilidade, de um lado, nos ajuda na rotina do dia a dia, mas diminui o exercício que fazíamos de memorizar alguma coisa. No momento que temos a confiança de que a informação não será perdida, não nos preocupamos em exercitar essa memorização”, afirma.
Distração e conhecimento raso. Em vez da memória, o pesquisador Ivan Izquierdo aponta outra preocupação sobre os dispositivos digitais: a distração, que acaba afetando nossas relações sociais. “Por exemplo: alguém dirige olhando para o aparelho ou alguém está falando na nossa frente, mas não ouvimos porque estamos com o celular”, exemplifica.
O escritor norte-americano Nicholas Carr, autor do livro The Shallows: What the Internet Is Doing to Our Brains (Rasos: O que a Internet Está Fazendo aos Nossos Cérebros, em tradução livre), fala sobre como a distração faz com que deixemos de memorizar algo.
“Enquanto nossa memória de longo prazo tem uma capacidade quase ilimitada, a de curto prazo é frágil e pode armazenar uma quantidade relativamente pequena de informação. Assim, uma quebra de atenção pode apagar o conteúdo da nossa mente”, escreveu Carr na revista Wired, em 2010.
Andréa diz que a geração do mundo digital se acostumou com conhecimentos rasos devido à imensa quantidade de informações disponíveis. “O aprofundamento do conhecimento hoje se faz de forma muito diferente e, às vezes, a gente não consegue sustentar um diálogo em um tema porque o conhecimento é muito superficial”, afirma.
Contraponto. Embora o estudo da Kaspersky indique que há relação entre ter todos os dados facilmente nas mãos e a dificuldade de armazená-los, o neurocientista Izquierdo diz que os dispositivos digitais não afetam a parte cognitiva e, na verdade, são aliados da memória. “Eles ajudam porque a quantidade de informações que temos de processar aumentou. Vivemos em uma era em que as comunicações são contínuas”, justifica.
É o que pensa também o professor aposentado Rudemar Delalamo Junior, de 59 anos, que usa o celular tanto para anotar compromissos quanto para telefones de contato. “Apesar de estar um tanto dependente dele, em termos de memória, ele continua sendo apenas uma ferramenta”, diz.
Ainda assim, ele diz que teria maior dificuldade de ficar sem o celular, visto que se comunica mais por aplicativos de mensagem do que por outros meios de contato. “Consequentemente, tenho poucos números decorados, praticamente só os da família”, afirma. Segundo ele, sua memória é “boa para fisionomias, mas ruim para nomes e números”.
No estudo da Kaspersky, a neurocientista Kathryn Mills, pós-doutoranda na Universidade de Oregon, também faz uma ponderação. “O ato de esquecer não é inteiramente ruim. Somos criaturas muito adaptáveis e não nos lembramos de tudo simplesmente porque isso não seria uma vantagem. Esquecer só se torna problemático quando se trata da perda de informações que queremos lembrar”, diz.
Futuro. Um estudo feito em 2001 pela psicóloga Denise Park, então diretora do Centro de Envelhecimento e Cognição do Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Michigan, mostrou que nossa memória e energia mental começam a declinar por volta dos 20 anos. Além disso, pessoas entre 20 e 30 anos estariam reduzindo sua capacidade cognitiva na mesma velocidade que as pessoas na faixa dos 60 e 70 anos.
A neurologista Andréa diz que esse declínio é fisiológico. Desde o nascimento até a adolescência, as células nervosas e o ganho do conhecimento estão em uma construção crescente, mas a velocidade com que isso acontece se reduz na fase adulta.
Ela diz que esse processo pode ser comprometido pelos dispositivos digitais, porém, mesmo que esses aparelhos afetem de alguma forma nossa memória de curto prazo, a neurologista afirma que não podemos generalizar que a nova geração terá problemas de memorização no futuro.
“Eu não preciso ocupar [a memória] registrando telefones, porque tem um aparelho que registra por mim. Isso não quer dizer que a pessoa não vai usar os vários domínios neurocognitivos de outras formas, como estudar muito para passar no vestibular ou aprender um novo idioma”, diz.
Tanto Andréa quanto o pesquisador Ivan Izquierdo concordam que a melhor forma de preservar a memória e evitar problemas futuros é exercitá-la. Ambos dão a mesma dica: leitura. “É o melhor exercício, porque no momento em que se lê, o cérebro põe em prática vários sentidos e faz um levantamento de todas as letras, palavras e associações”, explica Izquierdo.
Veja abaixo cinco dicas para manter a memória ativa:
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