Vitória de Deus não é uma criança como qualquer outra. Com palavras convictas sobre milagres divinos, a garota ganhou milhões de seguidores nas redes sociais e acredita ser uma enviada de Jesus Cristo. "Aos três anos de idade comecei a cantar, aos quatro eu já orava e, aos cinco, recebi o dom da cura para pregar e juntar multidões em torno de mim", afirma.
O pai, Cícero Graciliano, recorda que tudo começou no nascimento de Vitória, quando ela foi diagnosticada com problemas no pulmão. "Depois disso, ela começou a orar e hoje está abençoando a vida de muita gente", aponta.
A pastora mirim conta que já salvou a vida de um homem que queria se suicidar no Viaduto do Chá, em São Paulo, onde ela costuma pregar. "Pessoas sempre se atiraram de lá, mas isso mudou porque eu estou orando naquele lugar e Deus está expulsando o demônio que habita a região", diz.
Vitória nasceu em Petrolina, em Pernambuco, foi para Brasília ainda pequena e, no começo deste ano, veio morar em Suzano (região metropolitana de São Paulo), com o pai e os quatro irmãos, para lançar o seu segundo CD gospel. A mãe continua morando em Pernambuco, e a menina diz sentir muita saudade. "Converso com ela às vezes e quero muito que ela venha para cá, porque não pretendo mais largar São Paulo", revela.
A jovem sonha em ser juíza para "inserir a ordem e a moral", quer abrir um albergue para moradores de rua e pretende continuar com o trabalho de missionária quando crescer.
Os desejos dela movem a família. Cícero, que cuida sozinho dos cinco filhos, revela que a sua situação financeira ficou apertada desde que se mudou com eles, mas o anseio de ver a filha crescendo como missionária numa cidade grande é maior que as dificuldades. "Está horrível trabalhar aqui. Faço alguns bicos e a Vitória ajuda muito com as apresentações", confessa.
A renda familiar é de R$ 1,2 mil por mês ao somar os ganhos da garota com os dele. "Se estivéssemos aqui por causa do dinheiro, já teríamos ido embora para casa. Mas, estamos passando aperto acreditando no sucesso dela", diz o pai.
'Gosto de orar pelos LGBTs'
Vitória também faz eventos na Avenida Paulista, aos domingos, e conta que vai ao local para estar ao lado dos LGBTs, que a tornaram conhecida após uma live no Facebook em que ela manda um beijo para as 'pocs'. O termo pejorativo era usado para xingar gays afeminados, mas, hoje, deixou de ser ofensivo e se popularizou como um sinônimo de homossexual.
Apesar do carinho, ela foi considerada preconceituosa por internautas após postar um vídeo criticando pessoas que se atraem por outras do mesmo sexo. "Estou muito triste com o Brasil, porque tem homem se casando com homem e mulher se casando com mulher. Não era para ser diferente? Deus não criou Adão e Ivo. Ele criou Adão e Eva", reclama.
"Acredito que Deus avisou a Noé para não deixar um galo entrar com outro galo na barca. Ele mandou botar o galo com a galinha, e Noé seguiu a ordem do Senhor", complementa.
A pequena conta, também, que a Bíblia é homofóbica com razão e cabe aos crentes segui-la, mas que isso não a impede de se aproximar dos gays. "Cada um faz o que quiser. Gosto de orar pelos LGBTs, e fui muito criticada por evangélicos quando gravei uma música gospel com a cantora transsexual Lady Chocky, mas foi um trabalho muito bom", confessa.
'Criança deve pregar entre crianças'
O pastor e teólogo da Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo, Davi Charles, explica que os comentários da jovem e a forma dela evangelizar não são apropriados. "A Bíblia diz para não sermos neófitos [pregar com pouca idade ou quando o fiel é novo na religião]. Isso é estabelecido para que a criança não venha a ter orgulho excessivo sobre suas próprias qualidades", alerta.
Charles explica, também, que filhos pequenos devem aprender a praticar a fé dentro da própria faixa etária. "O ideal é levá-los para ensinarem na liga juvenil ou nas escolas dominicais", exemplifica. "Quando a fé infantil é usada para pregar aos adultos, a criança assume para si um peso que não cabe a ela", expõe.
De acordo com ele, pessoas na faixa etária de Vitória não devem assumir discursos moralizadores sobre sexualidade, por exemplo. "Levá-la a público para falar sobre esse assunto com um ponto de vista condenatório é uma forma de erotização precoce do discurso. Ela não deveria se preocupar com isso ou falar a respeito", orienta.
A maioria do público que assiste às pregações de Vitória é adulta, chora e se ajoelha ao vê-la orar. No entanto, a visibilidade da menina também gerou casos de racismo. "Tem gente que fala muito mal de mim. Já me chamaram de nega do cabelo duro e arrepiado. Isso me deixa muito triste", desabafa. "O que mais me magoa é quando xingam o meu pai e dizem que ele está me explorando, mas isso é mentira. Faço tudo porque gosto", assegura.
Os julgamentos e ofensas causam revolta na missionária: "eu vou vencer na vida e essas pessoas nunca vão participar das conquistas que Deus está preparando para mim".
'Eu me torno uma autoridade da fé quando pego no microfone'
Cícero confessa que não se preocupa mais com o fato da filha ser missionária com pouca idade. "Não me aflijo muito com isso, porque ela sabe separar a vida de criança do dom de autoridade divina. Ela é uma das maiores pregadoras do Brasil", garante.
Ele afirma que a pequena, apesar da forma incisiva de falar sobre temas sérios, sabe também se comportar como qualquer outra pessoa em sua idade. "Ela faz birra, chora, briga, brinca. É um bebê", diz o pai.
Mesmo assim, Vitória confessa que prefere orar a brincar. "Eu sou uma criança, mas quando pego no microfone para pregar a palavra de Deus, eu me torno uma autoridade da fé", assevera.
A menina acorda por volta das 11h e vai para a escola à tarde. Ao chegar do colégio, ela lê a Bíblia, brinca com os irmãos e depois entra nas redes sociais para interagir com os fãs até a madrugada. Além disso, ela frequenta a igreja duas vezes por semana e usa os sábados e domingos para profetizar em locais públicos.
'Não precisa privar nem estimular, basta acompanhar'
Ana Carolina Dias tem 24 anos e ficou conhecida aos sete após ser gravada pregando diante de uma multidão de evangélicos. Hoje, ela estuda Física, dá aulas para jovens e acredita que a graduação a ajuda a reforçar a fé. Além disso, a moça aderiu à campanha do Eu Escolhi Esperar e diz ter uma vida adulta tranquila. Veja como ela era quando pequena:
Diante do caso de Ana, o bacharel em Filosofia e médico psiquiatra do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP), Daniel Martins de Barros, explica que é precipitado dizer se o comportamento de Vitória vai prejudicá-la ou beneficiá-la no futuro, como muitos costumam supor.
"Ela pode criar novas percepções com os vínculos sociais que surgem ao longo da vida. Então, não precisa privar e nem estimular o ato de pregar, basta acompanhar", afirma. "Tudo que se afirmar sobre ela nesta fase da vida é especulativo, mas é necessário ter cuidado para evitar o fanatismo", aconselha.
A especialista em desenvolvimento psicológico da família, Ana Sesti Becker, analisou a religiosidade de dez crianças entre seis e dez anos de idade e notou que a maioria não sabe explicar o significado da palavra "religião". Entretanto, avaliou que as práticas de fé, como a leitura bíblica, participação em cultos e a ida aos retiros espirituais, podem ser benéficas.
"Quando essas atividades se dão de modo sistemático e contínuo, mediados por autoridades religiosas como pastores e padres, pais e amigos, a criança pode amadurecer, estabelecer uma identidade religiosa [no futuro] e fortalecer os vínculos familiares", escreve.
Apesar disso, a psicóloga salienta que ainda há poucos estudos sobre a influência da espiritualidade na infância.
*Estagiário sob supervisão de Charlise Morais
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