O que é shifting? Entenda a trend da geração Z para fugir da realidade

A trend shifttok tem milhões de visualizações no TikTok e comprova o interesse dos jovens em usar a técnica para viver experiências em mundos ficcionais como os de Harry Potter, ‘The Walking Dead’ e da Marvel

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Por Paola Churchill

A estudante de antropologia Beatriz*, 22 anos, se lembra de quando era pequena e a noite ia chegando. Seus avós gostavam de reunir a família para contar histórias Yanomami. Dentre tantas, existia a Pei Utupë, que, baseada em uma lenda, dizia que a alma pode viajar para outras realidades por meio dos sonhos.

“Não se trata de um sonho lúdico, mas, de fato, ir para outra realidade para se comunicar com as entidades da floresta”, explica Beatriz ao Estadão. E essa ideia nunca saiu de sua cabeça. Aos 14 anos, em uma comunidade da internet, quando ela descobriu a técnica do shifiting, ou diferente realidade, ou, ainda, DR, para os íntimos, as coisas começaram a fazer mais sentido para ela.

O que é shifting?

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O shifting é uma prática que começou a ficar popular nas redes sociais, especialmente no TikTok, entre adolescentes e jovens adultos, que consiste em tentar “mudar de realidade” por meio de técnicas de visualização, meditação ou até mesmo sugestões hipnóticas. Seus praticantes acreditam ser capazes de acessar versões alternativas da realidade, onde podem viver experiências desejadas, como estar em um mundo fictício ou com seus personagens favoritos.

A psicóloga Fernanda Calvetti Corrêa, especialista em psicologia analítica, tem como objeto de seus estudos o shifting, que tem seus adeptos e seus críticos.

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“Há quem acredite que o shifting é pecado, surto psicótico ou devaneio excessivo ou, ainda, papo de jovem que não dá conta da própria vida. Mas as pessoas precisam entender que elas também foram imaturas e se apegaram a temas específicos em sua juventude/adolescência - a coisas que faziam sentido para elas naquele momento”, explica a psicóloga.

Corrêa, que atende a várias pacientes que utilizam a prática no dia a dia, diz porém, que a prática em si, que não tem comprovação científica, não é um problema - desde que isso não atrapalhe a realidade da pessoa.

O personagem Draco Malfoy, de Harry Potter, viralizou no TikTok na pandemia Foto: Warner Bros

O mundo paralelo

Assim como Beatriz, Sofia e Stefany* também se interessaram pelo shifiting. “Durante a pandemia, não podíamos sair de casa. Um dia, vendo o feed do TikTok, descobri a parte do shifttok (comunidades no TikTok que se dedicando ao tema)”, explica a estudante de administração de 18 anos, Sofia.

O boom ocorreu em 2020, quando fanfics (narrativas criadas por fãs) de Harry Potter tomaram a rede social de vídeos. “Surgiram vários edits do Draco Malfoy e as pessoas começaram a se interessar mais e mais pelo universo de Harry Potter”, explicou Sofia.

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O personagem interpretado por Tom Felton nas adaptações cinematográficas virou o querido dos shifters e se tornou um S/O, ou significant other, como se fosse o crush nessa realidade paralela.

Com a vontade de explorar outros universos e o impedimento de sair de casa, os jovens começaram a encontrar meios de não apenas fugir da realidade, mas uma maneira de se divertir durante a quarentena. Os universos mais comuns entre os shifters são Harry Potter, The Walking Dead ou os filmes da Marvel.

Os vídeos sobre o assunto na plataforma alcançam milhões de visualizações. Nas redes, os praticantes se ajudam, trocam ideias e ensinam outros que querem ir para a DR pela primeira vez.

Como funciona?

“É mais difícil do que você pensa acessar a DR. Eu levei uns bons meses para conseguir”, comenta Stefany.

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Pode parecer confuso no começo, mas funciona assim: os shifters acreditam que podem “elevar” sua consciência para uma realidade alternativa.

“É como fazer uma viagem sem sair do lugar. Imagina que você está deitado na sua cama e, de repente, você está em Hogwarts tomando suco de abóbora com o Harry e a Hermione, ou talvez enfrentando zumbis com o Daryl em The Walking Dead. Parece mágica, mas na verdade é uma técnica de visualização e concentração”, explica Stefany.

Para isso, elas usam métodos de relaxamento profundo, como meditação, e algumas até escrevem roteiros detalhados, os scripts, do que querem vivenciar nessa nova realidade. Você decide cada detalhe dessa “nova vida”, desde o cenário até quem vai estar lá com você.

“Por exemplo, como minha DR é no universo de The Walking Dead, antes de dormir, escrevo tudo que eu quero que aconteça ou não aconteça. Quem quero encontrar, com quem quero passar o tempo, que eu não vou ser atacada por nenhum zumbi. Planejo tudo, e quando durmo vou para essa realidade”, acrescenta Sofia.

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Quem é adepto do shifting diz que tudo é possível - de ser um herói de série de ação até viver um romance digno de novela. Mas, dizem, nem tudo é tão fácil quanto parece.

Muito além do sonho

As três estudantes contam que quando tentaram pela primeira vez não sabiam muito bem se estava funcionando ou não. Ao se deitar, Stefany, por exemplo, lia e relia o script como se fosse um mapa que a guiasse. “No começo, tinha sonhos bastante vívidos e achava que tinha shiftado, mas não. Quando você shifta, você não sonha, você realmente se sente em outra realidade e sente toques, gostos. O que não acontece em um sonho normal”, explica.

Algumas pessoas levam tempo para dominar a técnica, mas a promessa é que, com prática e dedicação, você pode “despertar” em qualquer realidade dos seus sonhos. Beatriz vai mais além e cita o filme Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, dirigido por Daniel Scheinert e Daniel Kwan.

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“Sabe como a personagem vai pulando de realidade a realidade, mas continua a mesma? É quase a mesma coisa. Como faço há alguns anos, eu controlo o que vai acontecer e o que não vai dentro da minha realidade escolhida”, pontua Beatriz.

As críticas

Na realidade desejada, as pessoas adeptas deste movimento podem ser quem elas sempre quiseram ser. A ideia é não só viajar para um universo fantástico, mas também, em alguns casos, mudar a aparência e personalidade.

Por isso, começaram a surgir algumas críticas sobre a prática, de quem presume que jovens usem esse método por dois motivos principais: fugir da realidade que estão ou escapar de sua própria aparência. Para Sofia, não é nada disso.

“Não é. E sofremos muito preconceito por conta disso, inclusive. Se a pessoa visa a fugir da realidade, porque não gosta ou algo assim, é importante resolver essas questões na terapia. Não é escapando que elas vão encontrar a saída”, começa Sofia.

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Por isso, há quem fique envergonhado de falar que pratica o shifting, enquanto outras pessoas largam a prática por medo de retaliação. “Apaguei alguns vídeos, pois nos comentários mandaram eu ir para CAPS [Centro de Atenção Psicossocial]. O que as pessoas não sabem é que meu irmão tem autismo severo e usa dessa assistência. A piada para alguns é algo sério para outros”, diz Sofia.

O universo de 'The Walking Dead' também é muito procurado pelas shifters Foto: AMC Studios

“Outro ponto errado: acham que não temos vida ou que ficamos o dia inteiro fugindo da realidade. Mas nós temos vida social. Eu faço mestrado, amo minha vida. O shifting faz com que eu entenda melhor minha realidade”, afirma Beatriz.

Quando o shifting pode ser um problema?

Para a psicóloga Fernanda Calvetti Corrêa, “a maior contra-indicação é para quem acredita que a realidade desejada é a que deve ser vivida e experimentada como se fosse uma solução para problemas, ficando viciado em abraçar essa idealização e tentando ao máximo fugir da realidade dela”.

Ela finaliza: “Pessoas sensíveis emocionalmente que desejam ir e não voltar não podem ter acesso à prática. O tempo não para em nenhuma realidade. Isso traz diversas questões mentais negativas”.

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* Nomes fictícios. As entrevistadas preferiram não se identificar

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