Ruth Whippman estava com 42 anos quando decidiu descongelar o último embrião. Ela e o marido tinham dois filhos: Solly, 6 anos, e Zephy, 3. Todos os embriões restantes também traziam cromossomos XY.
Conforme sua gravidez foi ficando visível, a maioria das pessoas presumiu que ela estava tentando ter uma menina. Quando ela falava que teria um menino, as pessoas a tratavam “com pena”, disse Whippman, escritora anglo-americana, em uma entrevista recente em sua casa em Berkeley, Califórnia. “Dava a sensação de que os meninos eram meio decepcionantes”. Até mesmo seu carteiro lamentou a notícia.
Era 2017. Whippman, que se autodenomina feminista e progressista, estava vendo o movimento #MeToo explodir ao seu redor. Ela tinha a sensação de que os homens agora eram inimigos – o que fazia da gravidez de seu terceiro menino um tipo de desafio diferente daquele que ela já enfrentava em casa com dois garotos indisciplinados.
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Ela estava em conflito. “Minha parte feminista gritava: ‘Vamos derrubar o patriarcado!’, mas minha parte mãe queria embrulhar o patriarcado no seu cobertorzinho e ler uma história para ele”, Whippman escreve em seu novo livro, BoyMom, lançado esta semana.
O título do livro é inspirado no fenômeno das redes sociais conhecido como #BoyMom, hashtag que virou tendência nos últimos meses e tem tantas interpretações quanto um teste de Rorschach.
Na internet, #BoyMom [algo como “mãe de menino”] pode ser um distintivo de honra concedido a quem simplesmente consegue sobreviver às brincadeiras excessivas dos garotos. Ou pode ser uma tragédia, centrada no inevitável “rompimento” que precisa ocorrer entre mãe e filho. Ou pode ser ainda uma mensagem autoirônica, uma paródia da “mãe de menino tóxica” que está perigosa e orgulhosamente enredada com seu filho.
O trabalho de Whippman não perde muito tempo com esses memes. Parte livro de memórias (ela é a “mãe de menino” no título), parte reportagem, a obra tenta dar às mães – e aos pais também – ferramentas e informações sobre como criar meninos hoje.
Whippman, agora com 50 anos, não é a primeira pessoa a escrever sobre meninos como se eles precisassem de um manual prático especial. It’s a Boy! [É menino!], de Michael Thompson, e How to Raise a Boy [Como criar um menino], de Michael Reichert, viraram clássicos do gênero, às vezes presenteados a pais e mães de primeira viagem junto com roupinhas e mamadeiras.
Mas o nascimento de Abe, o terceiro filho de Whippman, deixou os outros dois mais abalados que nunca: Solly ficou taciturno e Zephy inventou uma persona que ele próprio chamou de “Dino Doidão”, que de repente saía chutando e mordendo tudo.
Whippman buscou orientação em livros para famílias e tentou todas as estratégias possíveis para melhorar sua vida dentro de casa. “Passei por uma fase em que tudo estava desmoronando e eu lia uns dois livros desses por semana”, disse ela. Mas muitos dos conselhos pareciam insuficientes, nada respondia às suas perguntas maiores.
Ela se irritava quando ouvia clichês redutivos circulando por aí, como “meninos não conseguem ficar parados”, ao passo que as meninas pareciam ser encorajadas com slogans como “O futuro é feminino”, que sugeriam que seu potencial não tinha limites.
“Estamos fazendo um trabalho excelente, quebrando estereótipos para meninas e falando sobre fluidez de gênero, crianças trans, mudança de identidade de gênero”, disse ela, sabendo que seu ponto de vista foi especialmente influenciado por ela morar no enclave politicamente progressista de Berkeley. “Mas a única categoria super-resistente à mudança são os meninos cis e as normas e expectativas para eles”.
E então ela decidiu encontrar respostas sobre o que ela chama de “masculinidade impossível”.
Compaixão pelos meninos
A maior surpresa que Whipmann disse ter encontrado em sua pesquisa foi a quantidade de evidências sobre a relativa fragilidade dos meninos em comparação com as meninas. Em inúmeros estudos, ela se deparou com motivos para se preocupar especificamente com meninos e homens: meninos prematuros têm menos probabilidade de sobreviver do que meninas prematuras; e os meninos têm mais probabilidade de serem diagnosticados com algum distúrbio de neurodesenvolvimento, como autismo ou TDAH e, mais tarde na vida, esquizofrenia.
Além disso, ela descobriu que circunstâncias adversas precoces, como pobreza ou depressão materna pós-parto, têm efeitos mais negativos a longo prazo nos rapazes do que nas moças. De acordo com um estudo da Brookings Institution, os meninos nascidos na pobreza têm menos probabilidade de sair dela mais tarde na vida do que as meninas que nascem nas mesmas condições.
Ela saiu convencida – em grande parte pelo trabalho do psicólogo e pesquisador Allan Schore – de que os bebês meninos precisam de mais cuidados do que as meninas em gestos como segurar no colo, embalar e acalmar, uma noção que ela detalha no livro e que muitos leitores podem achar surpreendente, ou até completamente equivocada.
Em uma resenha do livro BoyMom para a revista The New Yorker, a escritora Jessica Winter rejeita totalmente essa ideia. “Ela insiste que os meninos precisam de mais cuidados do que as meninas, e não menos – e, para a nossa surpresa, encontra dois especialistas que dizem praticamente a mesma coisa”, escreve Winter. Quando lhe pedi para comentar, Whippman disse: “Eu não tinha nenhuma noção preconcebida da neurociência infantil”, disse ela. “Mas descobri que havia uma enorme quantidade de literatura fundamentando essa ideia.”
Whippman disse que teve dificuldade de conciliar sua nova compreensão da fragilidade dos meninos com seu desdém por outra máxima sobre o gênero: boys will be boys, ou seja, “meninos serão meninos”. A implicação de que a biologia dos garotos é tão diferente e inegociável que seria preciso simplesmente sobreviver a ela muitas vezes pareceu a Whippman uma desculpa para se eximir da parentalidade ou uma forma de ignorar o mau comportamento.
Lise Eliot, professora de neurociência da Universidade Rosalind Franklin e autora de Pink Brain, Blue Brain [Cérebro Rosa, Cérebro Azul, em tradução direta], destacou que há diferenças quantificáveis entre meninos e meninas: por exemplo, o cérebro dos meninos é maior, em média, do que o das meninas; o cérebro dos meninos cresce mais rapidamente do que o das meninas; e as meninas passam pela puberdade antes dos meninos.
Mas não há consenso sobre o que vem da criação e o que vem da natureza quando se trata de meninos e meninas – muito menos sobre qual seria o peso de uma ou de outra, disse Eliot. Alguns pesquisadores, inclusive Eliot, acreditam que essas diferenças biológicas são exageradas. “Acho que as nossas expectativas em relação aos meninos estão cada vez mais baixas, pois atribuímos a culpa de tudo à suposta imaturidade do cérebro e à testosterona pré-natal”, acrescentou ela.
Eliot argumenta que as expectativas das famílias sobre como as meninas e os meninos devem se comportar estão tão arraigadas, as fantasias de cada gênero começam tão antes do nascimento, que não conseguimos não moldar nossos filhos nessas direções. “As diferenças cerebrais entre os sexos foram exageradas”, disse ela. “A natureza tem um peso, mas acho que estamos usando isso como desculpa. Se quisermos que os meninos sejam mais parecidos com as meninas, precisamos tratá-los mais como tratamos as meninas.”
Richard Reeves, ex-pesquisador sênior da Brookings Institution, agora presidente-fundador do American Institute for Boys and Men, um think tank dedicado a questões políticas relacionadas a meninos e homens, disse que, quando se trata de desempenho escolar, especialmente em línguas e alfabetização, “o quadro geral é que os meninos estão ficando muito atrás das meninas”.
Reeves retrata uma geração de garotos com dificuldades no sistema de escolas públicas, observando que, entre os 10% melhores resultados de notas, dois terços pertencem a meninas e, entre os 10% piores, dois terços pertencem a meninos. Reeves observa que a diferença vem aumentando. Além disso, “nas escolas de ensino fundamental e médio, 23% dos meninos foram diagnosticados com alguma deficiência de desenvolvimento”, disse ele. “Chega um momento em que você tem de se perguntar se o problema está no sistema, e não nos meninos.”.
“Em 2020, o declínio das matrículas em faculdades foi sete vezes maior para alunos do que para alunas”, escreve Reeves, observando que se trata de uma descoberta com implicações importantes para a mobilidade econômica.
Reeves também analisou a interseção entre gênero e raça na educação. “Embora a raça continue sendo um fator determinante no desempenho educacional, o gênero também pesa muito nos resultados”, escreveu ele por e-mail. “As meninas brancas estão superando todos os meninos na escola, os meninos negros estão em desvantagem inclusive em comparação com as meninas negras”.
E os problemas que os meninos enfrentam se agravam com a idade. De acordo com a pesquisa de Reeves, os homens têm maior probabilidade de morrer das chamadas mortes por desespero, como suicídio e overdose. Esta semana, Melinda French Gates anunciou que, embora a maioria de suas doações – no valor de US$ 20 milhões cada – seja destinada a ajudar mulheres e famílias, uma delas será destinada a apoiar o trabalho de Reeves sobre políticas para meninos e homens.
Preso dentro da ‘caixinha do homem’
“Meninos, meninos, vocês estão bem? Ou será que vou ter de vir aqui para fazer uma regra sobre travesseiros?”, disse uma professora da escola Allen-Stevenson para meninos no Upper East Side de Manhattan, em uma manhã de terça-feira semanas atrás. Ela tinha vindo para reprimir uma breve onda de travessuras com travesseiros entre um grupo de alunos de 8 e 9 anos esparramados pelo chão da sala de aula, suas posições preferidas para a hora da leitura.
A escola é uma das opções para meninos mais prestigiadas de Nova York, disponível para quem pode pagar mais de US$ 60.000 por ano (ou quem tem a sorte de receber ajuda financeira). E por mais antiquada que a educação para um único sexo possa parecer para algumas pessoas, ela continua bastante popular, talvez até mais popular que nunca, de acordo com Emily Glickman, presidente da Abacus Guide Educational Consulting, que há 25 anos ajuda famílias a enfrentar o processo de inscrição para os ensinos fundamental e médio na cidade de Nova York.
“Menino-logia” é uma palavra-chave no léxico da escola Allen-Stevenson, referindo-se ao conjunto de estratégias para “ajudar os garotos do jeito que eles precisam”. Entre as estratégias estão cadeiras que balançam, arranjos de assentos flexíveis, tiras de velcro nas carteiras para ajudar no estímulo sensorial, bastões antiestresse e “pausas para o corpo”.
“Você já ouviu falar da Caixinha do Homem?”, me perguntou Samara Spielberg, diretora do departamento de espanhol da Allen-Stevenson, em frente a uma imensa bandeira LGTBQ que os meninos tinham feito com quadradinhos colados. “A Caixinha do Homem é o que a sociedade diz que os meninos e os homens podem e devem ser. Meninos não choram. Meninos não demonstram emoções. E, se eles fazem qualquer coisa fora da Caixinha do Homem, são penalizados socialmente”.
O Dr. Cecil Webster, psiquiatra de Boston, tem sua versão da Caixinha do Homem, mas ele a chama de “Balde do Homem”. Ele disse que pensa nesse conceito com muita frequência em seu consultório, sentado diante de meninos e homens. Para muitos dos homens que Webster atende na terapia, disse ele, “geralmente é a primeira experiência de intimidade emocional com outro homem”. É uma afirmação surpreendente para um adulto, mas os pesquisadores descobriram que as amizades entre meninos geralmente diminuem na adolescência, à medida que os meninos se aproximam da idade adulta.
“As amizades entre meninos têm uma importância vital, mas muitas vezes acontece algo que pode dar a sensação de homoerotismo, como: ‘As pessoas vão achar que sou gay ou que sou molenga’”, disse Webster. “Isso leva a um grande sacrifício da intimidade emocional de que realmente precisamos como homens.”
Niobe Way, professora de psicologia do desenvolvimento na Universidade de Nova York, observou esses padrões ao longo de décadas de pesquisa e os descreveu em seu livro, Deep Secrets: Boys’ Friendships and the Crisis of Connection [em tradução direta, Segredos profundos: amizades de meninos e a crise de conexão]. Por mais antiquados que pareçam, esses padrões persistem: Way expande esses temas em seu próximo livro, Rebels with a Cause [Rebeldes com causa], argumentando que estamos todos presos na “cultura do menino” – um sistema de valores tóxicos que se baseia em estereótipos de masculinidade e que perdeu de vista a verdadeira conexão humana.
Esta também é uma das tristezas de Whippman: as interações desajeitadas e confusas que ela observou entre seu filho e os amigos. As conversas deles muitas vezes pareciam cair no silêncio ou girar em torno de videogames. Para ela, essas conversas pareciam muito diferentes das amizades profundas que ela tinha quando era criança.
Os filhos de Whippman hoje têm 13, 10 e 6 anos. Dois dos três agora recebem prescrição para estimulantes (as tendências nacionais mostram que os meninos têm aproximadamente duas vezes mais chances de serem diagnosticados com transtorno de déficit de atenção/hiperatividade do que as meninas). O nível de caos na casa de Whippman baixou um pouco, o suficiente para que ela esteja reconhecidamente “mais feliz”.
“Toda a conversa sobre meninos é tóxica de todos os lados”, disse Whippman. “Quero dar aos meus meninos e a todos os meninos opções diferentes de como estar no mundo.” / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
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