Você sabia que solidão e solitude são coisas diferentes? As características desses dois conceitos são apresentados logo no início do livro A Arte de Estar Só, do monge beneditino alemão Anselm Grün, conhecido como um mestre da espiritualidade e do autoconhecimento.
Membro da Abadia de Münsterschwarzach, mosteiro na Alemanha, Grün é autor de mais de 300 livros e já vendeu mais de 15 mil exemplares ao redor do mundo. Em sua obra mais recente no Brasil, lançada pela editora Vozes, o monge discorre, a partir de conceito filosóficos, sobre a importância de estar só.
O escritor explica por que tantas pessoas têm medo de estar sozinhas, e como isso está relacionado ao medo do isolamento e da solidão, mas afirma que estar só também é essencial para o autoconhecimento, o crescimento pessoal e para a espiritualidade. Com isso, Grün apresenta uma espécie de guia para que o leitor aprenda a abraçar a solitude.
No trecho abaixo, o monge aborda diferentes teóricos para expor as diferenças entre solidão e solitude, conceitos que permeiam todo o conteúdo do livro. Confira.
Leia também
Leia trecho de ‘A Arte de Estar Só’
Muitas vezes usamos as palavras “solitude” e “solidão” como sinônimos. Mas solitude tem mais a ver com a situação externa de estar sozinho. A solidão, por outro lado, expressa mais um estado de espírito. Eu me sinto solitário. Entretanto, muitas pessoas também dizem: I feel alone (Eu me sinto sozinho). Em nossa linguagem coloquial, nem sempre fazemos uma distinção entre solitude e solidão. No entanto, existe uma diferença entre esses dois termos. O psiquiatra de Munique, Fritz Riemann, descreve a diferença da seguinte forma: “Acredito que todos nós já estivemos sozinhos em algum momento sem nos sentirmos solitários, talvez até tenhamos buscado a solitude para nos concentrarmos em algo sem sermos perturbados e distraídos, para estarmos sozinhos conosco mesmos sem nos sentirmos solitários? E provavelmente todos nós conhecemos a outra experiência de estarmos na companhia de outras pessoas e ainda assim nos sentirmos solitários – por exemplo, porque as pessoas ao nosso redor eram estranhas ou indiferentes ou porque algo indescritível nos separava, como uma parede de vidro invisível” (Riemann, p. 24). Portanto, pode-se dizer que solitude é um estado, e a solidão, um sentimento. Mas a solidão também pode ser vista de maneiras diferentes. Ela não é apenas um sentimento negativo de dor e de tristeza, mas também expressa um estado de espírito como parte essencial de uma pessoa e que pode ser uma oportunidade de perceber o segredo da própria existência.
O filósofo Johannes Baptist Lotz acredita que há diferentes tipos de solidão, a saber, “uma solidão estimulante e uma solidão atormentadora, uma solidão fertilizante e uma solidão destrutiva”. Em sua opinião, “seria útil estabelecer uma distinção terminológica entre essas duas formas de solidão; caso contrário, às vezes, acabamos usando formulações que são insuportáveis. A palavra ‘solitude’ deveria ser reservada para a forma positiva à qual acabamos de nos referir; a outra palavra, por sua vez, ‘solidão’, deveria ser usada apenas para a forma negativa” (Lotz, p. 31). Para ele, a diferença decisiva entre solidão e isolamento se refere à capacidade de se relacionar. A pessoa solitária está em um relacionamento consigo mesma e, portanto, também é capaz de se relacionar com outra pessoa. O isolamento, por outro lado, “interrompe sua unidade viva com o outro; a pessoa é jogada num vácuo, por assim dizer, e definha nele” (Lotz, p. 32). Talvez seja útil descrever a solidão negativa como isolamento.
No entanto, sugiro ater-nos ao que Fritz Riemann descreve sobre os aspectos positivos e negativos da solidão. Ele pergunta qual é o aspecto verdadeiramente deprimente da solidão. E responde: “Acima de tudo, provavelmente, é a sensação da ausência total de segurança, de estarmos inteiramente sozinhos: ninguém fala conosco, não temos ninguém a quem recorrer; não sentimos nada além de um vazio ao nosso redor, um vazio aparentemente sem esperança e terrível, e somos tomados por um medo vago e indefinido que muitas vezes expressamos dizendo: ‘O teto está caindo sobre minha cabeça ou: ‘Sinto-me abandonado por Deus e pelo mundo inteiro’” (Riemann, p. 25).
O psicoterapeuta americano Irvin D. Yalom, fundador da terapia existencial, acredita que um dos quatro problemas que toda pessoa precisa enfrentar é a solidão. Ele faz uma distinção entre isolamento interpessoal e intrapessoal. O primeiro refere-se ao sentimento de solidão. Você se sente isolado dos outros e sofre com a falta de relacionamentos. Essa é a solidão da qual normalmente falamos. Mas Yalom reconhece um segundo tipo de solidão, o isolamento intrapessoal. Essa expressão se refere à incapacidade de estabelecer uma conexão entre as diferentes áreas dentro de si mesmo. Você se sente fragmentado por dentro. As diferentes necessidades e metas dentro de mim avançam em direções diferentes. Não consigo juntá-las.
Muitas vezes, o sentimento de solidão está ligado ao isolamento intrapessoal: como não consigo estabelecer um relacionamento comigo mesmo, também não consigo estabelecer um relacionamento com outras pessoas. Superar o isolamento intrapessoal é uma tarefa espiritual. Em vez de separar da minha consciência aquilo que é desagradável, eu ofereço tudo que surge em mim a Deus. Quando tudo em mim é permeado pelo amor de Deus, eu também me torno um com tudo que reprimi até agora. O Padre do Deserto Evagrius Ponticus estruturou sua mística sobre tornar-se um de tal forma que primeiro precisamos lidar com todas as nossas paixões e todos os nossos lados sombrios e integrá-los em nossa existência antes de nos tornarmos um com Deus. A experiência da união com Deus leva, então, tanto à unidade interna das forças psíquicas quanto à experiência da união com outras pessoas. Aqueles que experimentam a união com Deus também experimentam as forças divergentes dentro de si mesmos como estando em harmonia uns com os outros. E eles se tornam capazes de se relacionar.
Nem sempre a solidão precisa ser vivenciada de forma negativa. Ela também pode ser uma fonte de criatividade ou um caminho para a verdade pessoal. É por isso que o filósofo e ensaísta Odo Marquard acredita: “O que nos aflige, atormenta e maltrata nos tempos modernos não é a solidão, mas a perda da capacidade de ficarmos sozinhos: o enfraquecimento da força de ficar sozinho, de suportar o isolamento, o definhamento da arte de viver, de experimentar a solidão de forma positiva” (apud Schütz, p. 277). Portanto, muitos filósofos e teólogos consideram a solidão como algo que é parte essencial do homem. Mas a solidão só se torna proveitosa para nós se a aceitarmos. Então podemos dizer com Nietzsche: “Aquele que conhece a solidão última conhece as coisas últimas” (apud Schütz, p. 279). A solidão nos coloca em contato com os mistérios supremos de nossa existência. O ex-secretário-geral sueco das Nações Unidas, Dag Hammarskjöld, via a solidão como seu maior desafio para descobrir sua vocação. Por isso, ele deu o conselho: “Reze para que sua solidão se torne um aguilhão, para que você encontre algo pelo qual possa viver e que seja grande o suficiente para que você possa morrer por isso” (apud Schütz, p. 281).
A Arte de Estar Só
- Atitudes e rituais para moldar a solitude
- Autor: Anselm Grün
- Tradução: Markus A. Hediger
- Editora: Vozes (120 págs.; R$ 35 | E-book: R$ 26,30)
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.