O movimento ‘That Girl’ (aquela garota em português), começou a ganhar força no TikTok durante o caos da pandemia, na forma oposta de um choque de organização. Jovens ao redor do mundo passaram a compartilhar pequenos momentos da rotina a fim de incentivar outras garotas a ter um estilo de vida mais saudável, com foco no bem-estar físico, emocional e psicológico.
O fenômeno persiste, e abrange jovens adultas que mostram práticas muitas vezes impossíveis para a maioria das pessoas. Funciona assim: a rotina inclui acordar muito cedo, praticar exercícios físicos, cuidar da alimentação, focar nos estudos, organizar a casa e as tarefas diárias. Também é preciso dedicar uma atenção especial para a saúde mental, separando um tempo para a leitura e para a gratidão diária.
A estética dos vídeos é baseada em decoração clean (tons neutros e claros), com velas, luzes aconchegantes e um padrão de vida alto. Em resumo, seria uma vida supostamente perfeita e confortável.
Veja um exemplo de vídeo:
No Brasil, o estilo não foge ao padrão dos vídeos de uma That Girl, mas é perceptível a preocupação das influenciadoras em trazer temas como autoconhecimento e fragilidades para a pauta.
Embora seja um fenômeno voltado para a busca da melhor versão de si (um termo adaptado do glow up, disseminado fora do País e que infere uma melhora na qualidade de vida), especialistas ouvidos pelo Estadão alertam: apesar de o movimento trazer benefícios para quem se inspira na rotina de uma That Girl, é preciso tomar cuidado para não cair na armadilha da comparação e se forçar a criar um estilo de vida apenas para se enquadrar em um padrão.
“Ao mesmo tempo que é uma coisa boa promover valores saudáveis, isso pode criar uma pressão e uma exigência impossíveis de cumprir”, avalia o psicanalista e psiquiatra Roberto Santoro, coordenador do grupo de trabalho sobre saúde mental da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).
“O risco dessas propostas é justamente a superficialidade e a pressão para que as meninas que seguem essas pessoas se tornem também personagens.”
Neste texto, você vai saber:
- De onde surgiu o termo ‘That Girl’
- Quem são as garotas que seguem o movimento no Brasil
- Por que o fenômeno engaja muitas meninas a fazer o mesmo
- Os perigos de uma vida padronizada na internet
Em 2014, a ativista americana Alexis Jones fundou a comunidade I am That Girl, com um propósito que se assemelha ao movimento que criou forma nos últimos anos. A expressão se tornou título do livro lançado no mesmo ano. Sob a ótica do empoderamento feminino, o objetivo é inspirar cada mulher a encontrar e expressar quem elas verdadeiramente são: abraçando as suas forças e vulnerabilidades.
Não se sabe ao certo se o movimento que viralizou nas redes sociais tem origem no termo criado por Alexis. No entanto, a essência se mantém - só que agora, com a possibilidade de poder compartilhar 24 horas por dia, sete dias por semana.
“Até certo ponto é um movimento bem interessante porque ele traz informações de um estilo de vida saudável [...] São itens fundamentais e nós sabemos que hoje, cuidar de uma alimentação balanceada, fazer exercício físico, controlar a sua saúde com exames periódicos é muito importante”, pontua a psicóloga e especialista em distúrbios do desenvolvimento, Gabriela Luxo.
A única preocupação é quando deixa de ser algo saudável e passa a ser um excesso. “Vira algo negativo porque a pessoa precisa se cobrar para conseguir entrar nesses parâmetros e sofre por isso.”
Incentivo
A influenciadora Laura Garbin, 22, é uma das brasileiras que compartilha a sua rotina e incentiva outras meninas a se tornarem Aquela Garota. O próprio nome da sua rede social, Becoming That Girl, já diz tudo. Segundo ela, os conteúdos That Girl a ajudaram a entender a maneira que gostaria de viver.
“Comecei a me inspirar ainda mais e ter uma certa direção de onde eu queria chegar e quem eu gostaria de ser”. A jovem já conta com mais de dez mil seguidores no perfil e pontua que o objetivo da página não é mostrar uma vida perfeita, mas real.
“Não queria mais passar a imagem que para ser ‘aquela garota’ você precisa ter uma vida instagramável, aesthetic [que simula a estética dos vídeos That Girl] e perfeita, pelo contrário. Meu objetivo passou a ser ‘aquela garota’ que leva um estilo de vida saudável, equilibrado e real”, diz.
“Faço isso postando sobre os dias ruins, os momentos difíceis, as minhas recaídas emocionais... A realidade do dia a dia.”
A empreendedora na área de Design Gráfico pontua o que seriam os mandamentos para se tornar Aquela Garota, mas reitera que nada disso é uma regra. “Isso inclui atividade física, leitura, boa alimentação, terapia, hobbies”, lista.
“Levando em conta que cada mulher tem uma realidade, se tornar a melhor versão de si mesma precisa estar de acordo com a realidade individual e com os desejos e objetivos de cada uma [...] A rotina produtiva precisa ser para melhorar a qualidade de vida. No momento que se torna o oposto disso, perde o sentido.”
Além de Laura, outras influenciadoras brasileiras também compartilham do mesmo comportamento e colecionam dezenas de milhares de seguidores na internet. Yasmin Ambrosios, 18, é uma delas. A estudante de psicologia acredita que ser uma That Girl é respeitar os próprios limites e a rotina. “Para mim, ser [uma] That Girl é poder ser eu mesma, em um estilo de roupa que me agrade, com um estilo de vida que me agrade e [que] me coloque em prioridade”, observa.
A jovem argumenta que aqui no Brasil o movimento conseguiu se adaptar e se tornar “mais acessível”, de forma a propagar uma vida real e não “aparentemente leve e perfeita”. “Luto para todos os dias mostrar a realidade [...] Meu Instagram, que hoje ajuda as pessoas, foi o que me ajudou e me salvou da procrastinação extrema, daquela vida sem propósito“, pontua.
“Prego que o That Girl seja adaptado a rotina de cada menina, [para] que [elas] não se sintam pressionadas a ser positivas a todo momento, apenas gratas.”
Como estabelecer limites com os conteúdos?
Para o psicanalista Roberto Santoro, coordenador do grupo de trabalho sobre saúde mental da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), é natural que as jovens procurem um modelo externo para ter como referência ao construir a própria identidade. Mas ele faz um alerta.
“Esses modelos podem ser muito estereotipados e, às vezes, padrões impossíveis que fazem com que a adolescente se sinta muito aquém do que foi construído”, enfatiza. “É um bom discurso, mas pode causar modelos inalcançáveis.”
O especialista ressalta ainda que as plataformas digitais, como o TikTok , criam um personagem “mais ou menos ligado à vida real”. Segundo ele, conteúdos que “colocam critérios de perfeição que na vida real não correspondem”.
A psicóloga Gabriela Luxo enfatiza a importância de procurar o autoconhecimento, saber separar as questões emocionais do que se consome na internet e aprender a identificar o próprio limite. Dessa maneira, é possível estabelecer uma relação equilibrada com os conteúdos.
“Querendo ou não, são conteúdos que nós consumimos e que vamos ter que saber selecionar quais nos fazem bem e quais nos trazem um prejuízo”, diz. Além disso, ela disserta que caso haja essa vontade de se inspirar em uma That Girl para mudar algum hábito, é crucial começar aos poucos.
“Priorize. Você precisa ter um ponto de partida que faça sentido para você. Temos sempre [que saber] dosar o que é viável para cada um de nós.”
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