Com 62 anos, a motorista Ana Carolina Apocalypse viralizou no Twitter após publicar duas fotos em 17 de junho, uma espécie de antes e depois, mostrando seu processo de transição e que envolveu contar para o mundo algo que ela sempre soube: era uma mulher, mesmo que tivesse nascido em um corpo masculino.
A história de Ana exemplifica bem o cenário que o movimento LGBTQIA+ como um todo enfrenta. Apesar de todas as conquistas e progresso, ainda há muito preconceito e suas consequências, como a violência ou perda de entes queridos ao se assumir como parte desse grupo.
“Se eu tivesse me assumido antes, eu poderia nem estar viva. Eu fiquei introspectiva, foi necessário para a minha sobrevivência”, conta Ana em entrevista para o E+. Ela relata que sempre soube que era menina, mas o preconceito, aliado a uma falta de informação sobre a transsexualidade, acabou fazendo com que ela não mostrasse isso.
A situação mudou em 2017, quando Ana, na época José Francisco, estava assistindo à novela da Rede Globo A Força do Querer. Um dos principais destaques da novela foi a personagem da atriz Carol Duarte, que se descobre trans e passa pela chamada transição, terminando a novela como Ivan.
“Aquilo foi o estopim. Eu nunca participei de comunidade LGBT, eu não tinha informação. Quando eu vi aquilo, eu percebi, aí eu procurei uma psiquiatra”, relata Ana. A partir disso ela entrou em um programa do SUS [Sistem Único de Saúde] que visa fornecer apoio e acompanhamento profissional para pessoas trans.
Ana conta que a sociedade, com o preconceito, a homofobia e a transfobia, sempre a assustou, mas desde quando começou a transição tem estado mais alegre: “eu fui ficando feliz comigo mesma, eu praticamente estava me encontrando”.
Isso não significa que o processo foi fácil. A motorista conta que chegou a perder amigos após se assumir como trans, ela também já viu alguns poucos comentários a criticando no Twitter e até hoje algumas pessoas ainda a chamam de senhor ao invés de senhora, algo que ela tenta relevar. “Eu nasci uma menina, mas no corpo masculino. Essa é a minha essência, muitos não aceitam”, comenta.
Ela destaca que um problema é que muitas pessoas não entendem o que significa ser trans, por uma falta de divulgação de informações sobre o tema, e não sabem o que está por trás do processo de se identificar como trans e realizar a transição de gênero.
“Não é uma mudança que eu tive porque fiquei velha. As pessoas às vezes não entendem”, destaca ela. Essa falta de informação pode gerar ou intensificar preconceitos, algo que até hoje amedronta muitas pessoas que são trans, mas tem receio de se identificar como tal.
“Eu converso com muita gente, muitos tristes, porque não conseguem ter a coragem que eu tenho. Eu imagino, por causa da homofobia”, conta Ana. Ela também destaca a importância de procurar um acompanhamento de profissionais, o que ela fez, para ajudar no processo de entender o que é ser trans e a se assumir como tal.
Ana já fez terapia hormonal, adquiriu o seu nome social e colocou um implante de silicone em 2019, mas conta que não quis fazer a cirurgia de mudança de sexo ainda pois sente que não é o momento.
A história dela com o Twitter começa em 2011, mas ainda com poucas publicações. Foi apenas em 2020 que isso mudou, quando ela publicou a foto que mostrava como era em 2016 e como é agora. A publicação teve mais de 300 mil curtidas, e hoje ela tem mais de 35 mil seguidores.
“Quando eu achei que era a hora certa, eu comecei a fazer as postagens e dar a cara a tapa. Eu me senti muito segura, eu sabia o que viria pela frente”, conta Ana. O carinho e a simpatia que recebeu nesse processo tem surpreendido ela, que considera que a idade é um fator que a ajuda a ganhar mais simpatia nas redes. "Para mim foi simples, foi muito gostoso”, comenta.
A atenção que Ana tem recebido nas redes é algo que ela também vê com bons olhos: “Quem que não gosta? Engrandece qualquer um, você se sente elogiada, prestigiada”. “Não me vejo como um modelo ou alguém que inspira, não tenho perfil de personalidade. Eu acho que cada um tem o seu jeito especial de ser, hoje o que é bom é a inclusão”, complementa ela, destacando que sente um avanço da sociedade.
Essa fama repentina também fez com que a motorista recebesse muitas mensagens e depoimentos de pessoas que têm uma história semelhante à dela: mais velhas, acabaram escondendo da sociedade o fato de serem trans por medo, e hoje têm dificuldades para se assumir.
“Tem muita gente que fala ‘poxa eu queria ter a sua coragem’, isso me entristece. É difícil ouvir isso. Se você assume você pode perder família, casamento, é um peso muito grande”, relata Ana. Ela opina que o processo de se assumir requer que a pessoa tenha uma sensação de segurança, e foi apenas quando teve isso que fez a escolha, mesmo sabendo dos riscos e possíveis traumas no processo.
Apesar de mostrar uma alegria e satisfação com o momento que vive, Ana comenta que não pensa em mudar ou criar planos por causa da popularidade no Twitter: “Eu sou assim, vamos dançar de acordo com a música. Para mim querer ser alguma coisa, eu tenho que deixar acontecer. Eu não sei o que vai acontecer. Eu tenho sonhos sim, mas eles são particulares”.
*Estagiário sob supervisão de Charlise Morais
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