A série Bebê Rena é hit absoluto da Netflix. Lançada em abril, a produção já está há três semanas no ranking das mais assistidas da plataforma – no momento, ocupa a primeira posição em 92 países, com 22 milhões de visualizações. A trama é baseada em uma história real de perseguição sofrida pelo escritor e protagonista da série, o ator e comediante escocês Richard Gadd.
A repercussão de Bebê Rena tem gerado curiosidades sobre o tema, e a discussão ganhou um novo capítulo com a prisão de uma mulher acusada de perseguir durante cinco anos um médico e sua família em Ituiutaba, Minas Gerais. (Entenda o caso clicando aqui).
No Brasil, o stalking – ou simplesmente perseguição – é considerado crime e tem complicações legais. Esse tipo de relação obsessiva também pode gerar consequências psicológicas para as vítimas. A seguir, especialistas respondem a perguntas sobre o tema.
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Stalking é considerado crime?
Sim. O crime de perseguição é previsto no artigo 147-A do Código Penal Brasileiro, descrito como a ação de “perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade”.
A lei, que entrou em vigor em 2021, prevê pena de reclusão de 6 meses a 2 anos, além de multa. “Há aumento de pena caso o crime seja cometido contra criança, adolescente ou idoso, contra mulheres, e mediante o concurso de 2 ou mais pessoas ou com emprego de arma de fogo”, explica o advogado criminalista Caio Ferraris.
Quais são os tipos de stalking?
A lei não prevê tipos de stalking, mas a perseguição pode acontecer presencialmente, por interposta pessoa, de maneira digital, entre outros. “Está associada muitas vezes a outros crimes e contravenções (como ameaça, perturbação ao sossego, etc)”, explica Ferraris. “Em caso de violência física, o agente responderá não só pelo stalking como também por eventual lesão corporal ou até outro crime de maior gravidade”, detalha.
Como identificar se está sendo vítima de stalking?
Para identificar se está sendo vítima de stalking, a palavra-chave é repetição. Ou seja, “caso o agente esteja de maneira reiterada buscando contato ou se fazer presente nos mesmos locais da vítima, de forma ameaçadora e invasiva”, aponta Ferraris.
Quais as medidas que devem ser tomadas por vítimas de stalking?
A vítima, ao se sentir perseguida, deve procurar os agentes de segurança pública e um advogado de confiança para ser devidamente orientada, diz Ferraris. A recomendação geral é o registro de um boletim de ocorrência. “É importante destacar que a investigação policial de stalking depende da vontade ativa da vítima, dentro do prazo de 6 meses em que tiver a ciência do autor. Esgotado esse prazo, não se poderá mais processar o agente por aqueles fatos em específico”, destaca o criminalista.
O que é o stalking pela visão da psicologia?
De acordo com Wimer Bottura, psiquiatra e psicoterapeuta pelo Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPq-FMUSP), o stalking é uma manifestação frequentemente ligada a questões de ordem afetiva, como autoestima baixa, e a transtornos como o de personalidade, o de amor ou ciúmes patológicos. Neste caso, as mulheres são vítimas mais frequentes, perseguidas por parceiros ou ex-parceiros ciumentos que imaginam ter algum direito de posse sobre elas.
Para Patrícia Gomes, psicóloga e doutora em Psicologia/Estudos Psicanalíticos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o stalking pode ser entendido, na psicanálise, como uma tentativa ilusória de uma “completude narcísica”, no qual o sujeito busca algo que lhe falta no objeto de desejo.
Na cultural digital em que vivemos, tornou-se comum usar o verbo “stalkear” para expressar que se acompanha as postagens de determinada pessoa com frequência nas mídias sociais – mas existem limitações no ambiente virtual. “Há uma certa distância segura nessas plataformas, já que você não está vendo a pessoa no dia a dia, apenas o que ela mostra. Isso abre espaço para se imaginar o que gostaria que ela fosse, o que é um prato cheio para a perseguição”, entende a psicanalista.
A relação pode ficar cada vez mais complexa, e o ‘stalker’ passa a querer entrar na vida da pessoa ‘stalkeada’. “Esse sujeito vai ficando tão grudado naquilo que chega uma hora que precisa se separar de alguma forma. E aí ele entra nesse processo de agressividade em relação ao objeto que deseja”, diz Patrícia. Assim, a situação pode se tornar perigosa.
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Quais podem ser as consequências psicológicas para uma vítima de stalking?
As consequências psicológicas para uma vítima de stalking são “terríveis”, na avaliação de Wimer Bottura. “A pessoa se vê sem saída, porque aonde ela vai o stalker está atrás. Fica acuada, amedrontada, fragilizada. Não dorme nem se alimenta direito. É algo que deprime e ainda a faz perder a confiança em outras relações”, aponta.
Para o psiquiatra, a fragilidade prévia da vítima, e fatores como o medo da solidão, podem torná-la mais vulnerável às abordagens dos stalkers. “Muitas vezes há uma ingenuidade de acreditar na falsa bondade do perseguidor, de se sentir atraído e iludido por sua simpatia inicial”, analisa. Por isso é difícil tomar a atitude de buscar uma resolução por meio das vias legais e um acompanhamento psicológico.
“Há certa ambivalência. É como se a vítima quisesse um pouco daquilo, tem um lado masoquista e indefeso. É um processo terapêutico complexo”, aponta Bottura. Retratar essa reação ambígua é parte importante de Bebê Rena. “O protagonista mostra uma fixação em entender o que faz sua stalker se interessar por ele. Ele é uma pessoa completamente quebrada, se sente muito desvalorizado, desamado. Ela então devolve o sentimento de ser desejado, que ele não encontra em suas relações, e por isso segue nessa dinâmica doentia com ela”, destaca Patrícia.
Como acolher uma vítima de stalking?
É preciso acolher a vítima de stalking com compreensão e respeitar seu tempo. Diferente do retratado em Bebê Rena, em que a obsessão parte de uma pessoa inicialmente desconhecida, muitos casos de stalking acontecem com pessoas próximas, que fazem parte da vida da vítima.
“Muitas dependem financeiramente e até emocionalmente do stalker, é uma coisa difícil de se livrar. Por isso, a pessoa pode resistir a se defender. É preciso ouvi-la e fortalecê-la, com muito carinho, proteção, sem críticas, até que ela resolva sair”, diz Bottura. Uma medida interessante, ele indica, são trabalhos de terapia em grupo, em que pessoas em situações parecidas podem apoiar umas às outras.
Quanto ao tratamento psicológico da pessoa que pratica o stalking, Bottura acredita ser um processo complicado, já que a pessoa, apesar de gerar o adoecimento do outro, não se percebe doente. “Por isso a existência da lei que criminaliza o stalking é muito importante para proteger as vítimas e levá-las ao tratamento, assim como o stalker, que poderá aceitar a possibilidade de se tratar”, ressalta o psiquiatra.
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