Vaidosa, com batom vermelho e acessório nos longos cabelos loiros, Melissa Doblado, de 12 anos, chega tímida, mas logo mostra toda sua espontaneidade quando começa a falar do que gosta: andar a cavalo, o gato branco de estimação, viver afastada do centro urbano. O papo vai longe quando conta do seu canal no YouTube e reflete sobre a importância de passar informações sobre transgênero na internet.
"Por enquanto, eu estou passando essa informação, mas quando ficar maior, vou dar um tempo e seguir minha vida. Daqui a pouco, todo mundo vai estar sabendo muito disso e vão querer tomar isso pra eles", diz a garota. Segundo ela, o tema da transgeneridade está sendo tão discutido que, em breve, pode "virar uma moda" e deixar de ter a importância que merece. "Esse assunto precisa sempre continuar tendo importância para as pessoas nunca pararem de escutar ele", completa.
Junto com a Mel - como a menina gosta de ser chamada -, o Piero Yoahan, de 19 anos, a Brunna Valin, de 43, e a Thais de Azevedo, de 68, conversaram com o E+ sobre transexualidade para o Dia da Visibilidade Trans, celebrado hoje. Em diferentes fases da vida, eles contam como lidam com o olhar do outro e falam da liberdade de ser quem sempre foram.
Karina Doblado De Fazzio, de 38 anos, mãe da Mel, conta que, desde os 2 anos, a filha gostava de usar as roupas e os calçados dela. "Eu deixava porque a deixava feliz, mas não achava bonito. Aos 5 anos, percebi que não era fase. Eu nem conhecia a palavra transgênero, então tinha certeza de que (ela) ia ser gay", diz.
A mãe aceitou aquilo que imaginava, mas não achava necessário que a criança, até então um menino para ela, se vestisse de menina para gostar de um garoto. "Ela dizia que nem tinha certeza se gostava de menino, mas queria ser uma menina", conta. Hoje, ela diz que percebe a diferença entre a Mel e o filho de um ano e nove meses.
Karina, que é psicóloga, só foi entender o que ocorria com a filha quando um primo dela, homossexual, explicou a diferença entre identidade de gênero e orientação sexual. Depois de alguns enfrentamentos na família, os pais de Melissa - que chegaram a se separar por ele achar que a mãe era culpada pelo comportamento da filha - descobriram o trabalho do Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas.
Atualmente, a menina faz tratamento para bloquear a puberdade, a fim de que não se desenvolva nela qualquer característica masculina. Até os 16 anos, ela continuará com o procedimento e sob observação para, só então, começar o tratamento hormonal que desenvolverá características femininas.
Quem já está na fase hormonal é Piero Yoahan, de 19 anos. Ele também é atendido pelo ambulatório, recomendação da psicóloga que o ajudou a entender quem ele é. "Até os 15 anos, eu achava que era lésbica", conta, mas ainda estava insatisfeito. "Eu me olhava no espelho e sentia que tinha coisas demais ali e coisas que me faltavam, eu não me identificava, parecia que era outra pessoa", relata.
O jovem estudante de Direito entrou na adolescência cheio de dúvidas e teve problemas com o pai, que não o aceitava e o proibia de ter amigos que ele não quisesse. Mais do que usar roupas masculinas, Yoahan queria ter barba e ser tratado no masculino. O apoio constante veio da mãe, também psicóloga, que o ajudou a escolher o novo nome.
Na faculdade, com os documentos ainda com o nome de registro, teve de apresentar carta de próprio punho e outra do advogado para explicar que o processo de alteração do prenome é burocrático e demorado, além de apresentar a lei que assegura o uso do nome social.
Prezando pela empatia e gentileza, Yoahan busca explicar com paciência, quando necessário, sobre o processo pelo qual está passando. Sobre preconceitos, ele afirma que nunca enfrentou grandes problemas. Embora diga que os adolescentes sejam mais tolerantes hoje em dia, por ter mais voz, representatividade e meios de pesquisa, os mais velhos também respeitam a diversidade.
"O coordenador do meu curso tem 82 anos e me trata com respeito, com carinho. Idade não faz você ser preconceituoso, idade é o que você usa como desculpa. [As pessoas] só não querem ter empatia pelo próximo porque acham que elas são o centro do universo", declara.
O preconceito, porém, acompanhou por muitos anos a vida de Brunna Valin, de 43 anos, socioeducadora no Centro de Referência e Defesa da Diversidade (CRD). O olhar e o tratamento diferentes vieram de colegas e professores aos 7 anos de idade quando foi para a escola. Os xingamentos viraram agressões físicas, que se tornaram constantes conforme ela percebeu que tinha uma identidade diferente daquela que era colocada socialmente.
Os enfrentamentos começaram dentro de casa, aos 12 anos, quando passou a fazer atividades consideradas do universo feminino. "Muitas vezes, eu apanhei [dentro de casa] sem saber o porquê", conta Brunna, mas a mãe, como ela diz, "sempre foi a protetora" que, por muitas vezes, tomou o lugar da filha.
A insegurança familiar e a falta de amparo na escola fez com que Brunna fugisse de casa para escapar da violência. "Aos 17 anos, eu era quem queria ser, só que eu não tinha outra opção a não ser a profissão do sexo que, para mim, foi algo que marcou muito também. Eu achava que na rua eu sofria menos do que dentro de casa, mas [as violências] são muito parecidas", diz.
Mas a libertação também faz parte da vida de Brunna, que veio com a ajuda da psicoterapia, que ela considera "importantíssima" no processo de construção da sua identidade. "Eu passei a me entender e hoje eu me apresento como mulher transexual, porque eu aprendi que, para a Brunna existir, ela tem que, no mínimo, saber quem ela é. A felicidade chegou juntamente com a descoberta da minha transexualidade", afirma.
No Brasil, onde a expectativa de vida de travestis e transexuais é de 35 anos e o número de assassinatos em 2017 é o maior em dez anos, Brunna sente-se realizada e se inspira em quem foi além. Thais de Azevedo, de 68 anos, também socioeducadora no CRD, conquistou sua liberdade por ser transgênero através de muito estudo e autoconhecimento.
Nascida em Várzea da Palma, Minas Gerais, Thais cresceu com a liberdade que o viver na roça permite às crianças. Foi também aos 7 anos que percebeu, intuitivamente, o olhar diferente da professora, mas, do mesmo modo, não se deixou afetar. "Eu sei que existe [diferença], mas não me afeta. Eu aprendi intuitivamente a me colocar acima, não no senso de pretensão e de arrogância, mas de um autoproteger", diz.
O amor e respeito recíprocos dos pais a mantiveram longe de vícios e problemas com a polícia, mas, por influência de uma parente, saiu de casa por volta dos 14 anos por sentir culpa. Segundo lhe falaram, seria uma vergonha para os pais saber que ela não era heterossexual.
Com aparente tom saudosista, ela conta do tempo que foi manequim de um estilista famoso, desfilando em lançamentos e tendo contato com pessoas cultas, do mundo da moda, da política e da comunicação. O preconceito, porém, mais uma vez, a fez se afastar e, com cerca de 20 anos, foi morar em Paris a convite de uma amiga. "Cheguei a ser qualificada pelos franceses como uma mulher muito elegante, o que dá um poder de autoafirmação muito grande", conta.
Trabalhando como acompanhante de luxo, expandiu seu conhecimento político, social e de si mesma. Emocionada, conta que, infelizmente, sentia-se melhor no exterior do que quando voltava ao país de origem. "Me sentir mais feliz em um país que não era o meu foi uma das coisas mais perversas que o rejeitar social do Brasil me causou", diz.
"Preta, transgênero e velha", como se declara, Thais tem de lutar muito mais pela dignidade coletiva das classes que representa. Embora não queira esconder dos mais novos que o mundo para travestis e transexuais é doloroso, ela mantém um discurso positivo de resistência. "Ninguém vai mais construir toalhas de mesa bordadas e lindas para cobrir nossas deformidades. Está tudo muito na cara. Isso me dá força para fazer um discurso que a gente vai conseguir muita coisa e que eu ainda vou ver muita coisa que é muito interessante", afirma.
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