Desmistificar e relatar histórias de pessoas trans, sempre com humor, é o objetivo de Transistorizada, uma história em quadrinhos criada pela carioca Luiza Lemos. Os quadrinhos são publicados em sua página do Facebook e em seu blog desde setembro deste ano.
Luiza já fazia quadrinhos há muito tempo mas, ao fazer a transição de gênero, seus personagens passaram a não fazer mais sentido. "O que eu fazia antes tinha protagonistas masculinos, até porque fazia parte do meu papel de gênero naquele momento da minha vida. Quando decidi assumir a minha transgeneridade, eu fiquei um ano afastada do mercado de quadrinho independente, que é onde publico minhas histórias. Cheguei a um final de roteiro, escrevi cem páginas e não me senti representada ali", contou ao E+.
Depois de tantos meses, um programa de televisão trouxe inspiração a Luiza. "Eu estava assistindo a um programa LGBT, o Estação Plural, que passa na TV Cultura, e vi um dos apresentadores fazendo uma metáfora. Quando ele era jovem, ele ficava triste dentro de um armário. E aí eu fiz automaticamente uma imagem na minha cabeça, de uma pessoa triste, encolhida dentro do armário. E aí eu pensei: 'nossa, essa imagem dá um quadrinho'. Aí eu tive um insight: 'vou fazer eu mesmo dentro do armário. Eu vou usar esse meu viés de quadrinhos de humor e vou fazer a história'".
E o Transistorizada nasceu. Na primeira publicação, Luiza se apresenta e logo conta que ela nem sempre foi daquele jeito. Então, nos quadrinhos seguintes, ela sai do armário - literalmente. E, com o apoio de um amigo, ela caminha 'rumo à liberdade' num unicórnio rosa.
"Todos os meus amigos me receberam muito bem, e é justamente nesses momentos que a gente percebe que a gente escolheu as pessoas certas para serem nossos amigos", contou a artista. A ideia foi tão boa que não ficou apenas na história de sua transição: semanalmente, Luiza posta pequenas tiras com situações comuns a transexuais e críticas ao preconceito.
"Nas tiras, têm coisas que aconteceram comigo e têm coisas que aconteceram com amigas minhas trans e também e relatos de pessoas no geral que me contam. Não necessariamente só sobre a minha vida", explica Luiza. No ano que vem, a ideia é que a Transistorizada ganhe edições impressas - e ela já imagina como será. "A revista vai ter três recortes: o primeiro será sempre uma história minha, momentos da minha transição; tiras, com assuntos do universo trans no geral; e por último uma história ficcional inédita no final, com temas variados".
As tirinhas semanais trazem muitas informações úteis a quem não tem muito contato com o universo trans - ou àqueles que simplesmente ignoram esse tipo de informação. Uma delas, por exemplo, fala da questão dos banheiros, e explica que as pessoas são muito mais que suas genitálias. Outra tira trata sobre o preconceito baseado em crenças religiosas, e a personagem ironiza a capacidade de amar o próximo.
Sejam as histórias pessoais, sejam as tiras, o Transistorizada tem um propósito muito claro: mostrar um outro lado positivo das pessoas transexuais e levar conhecimento sobre esse universo, como termos corretos e direitos dos trans. "Meu propósito com o Transistorizada é falar da questão trans com um viés otimista. A gente sabe que tem muito preconceito, o Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo. E sempre se fala de pessoas trans com um viés pesado, da violência, que 90% dos transexuais vão para a prostituição - por mera falta de oportunidade no mercado de trabalho. Eu acho importante que isso seja dito, porque é uma realidade dura. Eu me considero uma pessoa extremamente privilegiada, porque eu tenho um emprego, uma carreira, uma vida estruturada. Eu sou uma exceção. Mas o propósito da história é, apesar de eu achar importante essas questões, não aparentar para as pessoas que um transexual ou travesti é só coisa ruim. Na verdade é maravilhoso ser quem você é, poder assumir sua identidade para a sociedade. E o objetivo é mostrar uma versão positiva do transexual, uma versão em que coisas legais acontecem com trans e que, apesar das críticas, elas são sempre engraçadas, a personagem lida com as dificuldades de forma positiva", relata.
Recepção positiva. Para sua surpresa, seu trabalho já está sendo bem recebido no mercado de quadrinhos. "Eu voltei agora para o mercado independente na CCXP, e eu fui com muito receio. O meio nerd/geek é muito machista e muito sexista, eu fui para lá com muito medo mesmo, com medo de sofrer uma recepção desfavorável. Eu estava no stand de venda de artes, mas às vezes eu dava uma circulada e ia falar com outros artistas que estavam lá, e recebi elogios. Se alguém achou ruim, não falou, mas quem gostou falou, elogiou. Teve gente que foi na minha mesa para conhecer o trabalho. Achei uma recepção bem legal."
Nos grupos de histórias em quadrinhos nas redes sociais, onde divulga seus trabalhos, ela também observou uma boa repercussão. "As tiras estão aí para dar uma informação importante sobre a questão trans, um amigo meu viu e me falou: eu aprendi muita coisa lendo suas tiras. Realmente, eu publico a tira na página do Transistorizada e compartilho em vários grupos do Facebook e recebo perguntas nos comentários: 'Toda pessoa trans quer ser chamada no feminino?' ou 'porque essa questão é importante para as trans?'. É legal esse feedback, vejo que as pessoas não só leem e acham engraçado mas que também têm duvidas. É muito importante para a comunidade trans ter um canal onde as pessoas se informam", acredita.
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