“Tem gente que chega às vezes e fala: ‘Nossa, ele nem parece que é autista’. Ninguém é autista. A pessoa tem um transtorno chamado Autismo. O Pedro não é autista. O Pedro é o Pedro”. A frase é da professora Luciana Aparecida de Moraes Correa que mora em Poços de Caldas, Minas Gerais. Ela é mãe de Pedro, de 13 anos, que foi diagnosticado com Transtorno do Espectro Autista a partir dos seis anos, e notou que o filho tinha comportamentos ‘diferentes’.
“Gosto de colocar o ‘diferente’ entre aspas. Não é que o Pedro era diferente de ninguém, que tinha um ‘problema’. Eu achava que o tempo dele era diferente dos outros. Enquanto uma criança conseguia estar alfabetizada com seis anos, o Pedro só conseguiu com oito. Conforme fui percebendo que ele não correspondia à expectativa do momento, busquei ajuda de uma fono. Também observei que ele tinha dificuldade em fazer amizades, em participar de grupinhos, aí busquei ajuda de uma psicóloga e assim foi indo”, relata. Além de Pedro, Luciana tem Manuela, de nove anos. A professora relata como a caçula começou a perceber que o irmão tinha alguns ‘privilégios’: “Até hoje, o Pedro tem dificuldade enorme em decorar coisas como a tabuada. Na sala de aula, a professora deixa ele consultar a tabuada para aprender o processo de multiplicação, divisão. Então, a Manuela começou a questionar porque ela não poderia também consultar a tabuada”.
Até receber o diagnóstico de Autismo do filho mais velho, Michelli Miguel de Freitas não conhecia muito sobre o transtorno. O desenvolvimento de Diogo, na época com um pouco mais de dois anos, estava de acordo com a faixa etária. A mãe começou a perceber sinais de atraso na comunicação do menino. A preocupação com a fala fez com que ela não notasse outros sinais como estereotipias, por exemplo.
Em maio de 2014, após idas a diversos especialistas, o diagnóstico de autismo chegou para a família. “Diogo tem sete para oito anos, por isso nós nunca contamos para ele sobre o Autismo, já que é um assunto muito complexo e não pensamos que está no momento de explicar para ele sobre isso”, relata Michelli, que é pedagoga. Após saber da condição do filho, ela se especializou na área e comanda o Instituto de Educação e Análise do Comportamento (IEAC). Diogo também tem um irmão mais novo, o Benício, que tem cinco anos de idade.
Como falar sobre Autismo com crianças?
Ao perceber que a caçula começou a notar diferenças entre ela e o irmão, Luciana Aparecida de Moraes Correa se preocupou rapidamente em esclarecer algumas questões.
“Aproveitei para sentar com ela quando já tinha uma certa vivência, com seis anos, e comecei a usar a linguagem dela. Falei: ‘Você já percebeu que o Pedro troca a letra “r” pela “l” quando fala?’ E ela disse que havia percebido. 'Então, por isso que ele precisa fazer fono. Você já percebeu que o Pedro, quando chega na escola, está num canto, sozinho, sem ninguém? Por isso que ele precisa ir à terapia’. Comecei a mostrar as diferenças”, relembra. Usando a linguagem mais lúdica possível, a mãe de Pedro explicou à Manuela: “‘Todas essas situações fazem o Pedro ter uma palavrinha que se chama Autismo, que apenas determina que em algumas situações ele possa ver as coisas de forma diferente. Às vezes, pra gente é fácil e pra ele não. E a gente precisa trabalhar isso aí’. E ela logo começou a ter uma compreensão da situação”, esclarece. Michelli Miguel de Freitas acredita que Benício, irmão mais novo de Diogo, que tem TEA, ainda não está pronto para uma conversa complexa. “Aos poucos fomos introduzindo o entendimento de que o irmão tinha mais dificuldade em uma área do que em outra, que ele ainda não havia aprendido algumas coisas e que tínhamos que ensiná-lo com calma e paciência. E, gradualmente, fomos dando nomes a estes comportamentos que o irmão tem, explicando que se trata de Autismo, mas sem focar muito nisso, pois é algo muito complexo”. Na avaliação da neuropediatra Deborah Kerches, é essencial falar de maneira descomplicada, mas direta. Com a ajuda da profissional, listamos algumas dicas:
- Os pais devem explicar que o irmãozinho tem Autismo e que por isso se comporta, brinca, sente, aprende e se comunica de maneiras diferentes de outras crianças. Mas que ele também gosta de brincar, que tem capacidade para aprender; - Dizer que a criança pode ajudar no desenvolvimento do irmão e ter momentos incríveis juntos; - Orientar os irmãos sobre como conversar com a criança com TEA: falar diretamente com frases curtas; usar palavras simples; evitar uso de gírias, trocadilhos, metáforas, duplo sentido; - Evitar sempre afirmações generalizadas como “autistas não gostam de abraço”, “autistas não fazem amigos”, entre outras; - É muito importante não falar sobre a criança com TEA como se ela não estivesse presente. Vale lembrar que ela pode entender o que acontece à sua volta. - Explicar que pessoas com Autismo podem ter dificuldade em fazer ou manter o contato visual, de aceitar o toque, de entender a função de um brinquedo, mas não significa que não queiram brincar; - Alguns não desenvolvem a fala, mas se comunicam de outras maneiras; - Explicar que a criança com Autismo pode ter hipersensibilidades visual, tátil, olfativa, gustativa, auditiva e que o som alto, por exemplo, pode incomodá-la;
Orientação aos pais
A neuropediatra Deborah Kerches, especialista em Transtorno do Espectro Autista (TEA), faz um alerta aos pais: “A rotina junto a uma criança com Autismo tende a ser intensa, com idas a médicos e terapias. Então, se há outra criança na casa, é essencial que se atentem a isso, não negligenciando o tempo com o outro filho, prezando por atividades em grupo, por manter a família sempre unida e também reservando um tempo exclusivo para cada um dos filhos”. Outra dica importante é tentar sempre ficar na altura da criança, abaixando se necessário, para facilitar o contato visual e falar de forma clara, respeitando o tempo e o espaço dela. Crianças com Autismo podem ter dificuldade em determinada tarefa, mas muita facilidade em outra. É importante encorajar os pequeninos a convidarem o colega com TEA para brincar, mesmo que ele esteja sozinho ou que não responda ao ser chamado. O Autismo não define uma pessoa, é apenas uma parte dela. “E crianças conscientes sobre o que é o Autismo contribuem na construção de uma sociedade mais acolhedora, empática, menos preconceituosa e mais inclusiva”, afirma a neuropediatra Deborah Kerches. A especialista elaborou um e-book para auxiliar aos pais no desafio de explicar sobre TEA para crianças; acesse aqui.
Dica de leitura e série sobre o TEA
A série Atypical, disponível na Netflix, conta a história de um garoto que tem Transtorno do Espectro Autista e como ele se desenvolve ao longo da juventude. Sam, interpretado pelo ator Keir Gilchrist, também tem uma irmã mais nova, que o protege sempre que pode. Aos 18 anos, ele passará por muitos desafios, como sair de casa sozinho, ser aprovado na escola e viver um romance.
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Na sexta-feira, 1º, o serviço de streaming disponibilizou a terceira temporada de Atypical.
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Uma dica de leitura bacana é a obra Eu, minha irmã e seu universo particular - Uma história de amor e autismo. De Eileen Garvin, o livro conta a história da autora e da irmã dela, Margaret, que foi diagnosticada com Autismo aos três anos de idade.
Eileen assumiu um papel protetor em relação à irmã, tentando sempre entender suas necessidades, que eram camufladas muitas vezes em falas limitadas e monossilábicas. Enquanto relembra situações inusitadas por que passaram juntas - algumas engraçadas, outras, doloridas -, Eileen expõe a relação estabelecida entre as duas.
Serviço:Eu, minha irmã e seu universo particular Autora: Eileen GarvinTradução: Regina Lyra 204 páginas R$ 29,90 Editora Agir
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