THE WASHINGTON POST - Será que nós merecemos nossos animais de estimação? Esta era a pergunta que ocupava minha cabeça enquanto eu me arrastava pelo chão da cozinha, às cinco da manhã, esfregando com uma toalha de papel úmida os cacos de vidro do pote de geleia que nossa gata tinha quebrado. Ela tinha feito de propósito – soube disso assim que o som do vidro quebrando me acordou no escuro. Na hora de dormir, alguém tinha usado o pote para beber água e o deixado sobre a bancada da cozinha. E a gata, sentindo que o amanhecer se aproximava, decidiu ver se derrubá-lo no chão faria as pessoas se levantarem e se mexerem.
Foi preciso fazer um certo esforço para acolher essa gata na nossa vida familiar. Cresci dividindo uma casa com uma profusão de gatos e cachorros, dois ou três de cada vez, mas meus filhos, que sempre moraram em apartamentos no centro da cidade, chegaram a dois dígitos de idade sem nunca ter um pet por perto. Assim como grelhar hambúrgueres no quintal, a companhia de animais era algo da minha infância que não se traduzia na deles.
Mas, finalmente, conseguimos um apartamento um pouco maior, com banheiros um pouco maiores. Se colocássemos uma pia de pedestal em um deles, haveria espaço suficiente para uma caixa de gatos. Medi e confirmei: poderíamos ter um gato.
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Foi então que percebi que não tinha a menor ideia de como conseguir um gato. Com exceção do meu primeiro, um siamês que ganhei de presente quando tinha 7 anos, todos os outros tinham simplesmente acontecido: perdidos pelo bosque, meio crescidos, magrelos e famintos, geralmente sofrendo de tênias. O melhor e mais querido deles, um malhado cinza e branco, tinha aparecido numa ninhada de gatinhos recém-nascidos na vala de drenagem num dia frio, com os olhos ainda fechados. Nós cuidamos dele e de seus irmãos com uma seringa até eles ficarem bem gorduchos, e ele cresceu e passou a andar atrás de mim fazendo chilreios e resmungos, desconhecendo qualquer diferença entre ele e os seres humanos.
Mas agora era preciso encontrar um gato – encontrar e, pelo jeito, merecer. Amigos recomendaram um portal de busca de animais de estimação online, cujas listas indicavam o caminho para diversos grupos de resgate de animais, próximos e distantes. Os grupos de resgate tinham questionários para avaliar os humanos: Você vai alimentar seu gato com ração enlatada ou seca? Sua agenda é estável? Quantas horas por dia seu gato vai ficar sozinho em casa? Uma das inscrições tinha oito páginas, com campos para informar contas de redes sociais, dados profissionais, histórico de empregos e duas referências.
Consegui entender o que os questionamentos queriam, especialmente a série de perguntas para eliminar possíveis maus-tratos: Você tem ou já teve um gatinho/gato sem garras? Você planeja retirar as garras do seu gatinho/gato? O que você faria se seu gatinho/gato não parasse de arranhar os móveis? Mas senti que havia algo estranho com a ideia de “resgatar animais”. O resgate é um conceito estranhamente duplo: um dever moral básico – recusar-se a resgatar alguém seria um erro grave –, mas também um ato de heroísmo. Todo mundo deveria cuidar de um gatinho necessitado. Quase ninguém era digno de cuidar de um gatinho necessitado. Ou de um gato. Pedir especificamente um gatinho novo parecia uma coisa suspeita, uma rejeição insensível a todos os gatos mais velhos e suas muitas vulnerabilidades.
Também queríamos um gato só para preencher aquele espaço, onde só caberia um único gato. E isso era outro problema. Uma regra geral parecia estabelecer que você só poderia ter um gatinho se adotasse dois gatinhos – ou pelo menos tivesse outro gato em casa, para que o recém-chegado não ficasse solitário.
Isso me pareceu uma simplificação barata da psicologia felina: nenhum dos gatos da minha infância prestava a menor atenção a qualquer outro gato, exceto a gata do meu irmão (encontrada nas lixeiras atrás do apartamento do professor de violino dele), que sofria de um impulso irresistível e furioso de maltratar o meu siamês. Nas costas da minha mão esquerda, bem no meio, ainda tenho a cicatriz de quando ela me cravou os dentes porque tentei agarrá-la no meio de um ataque. A gata já se foi há décadas, e minha mão agora tem o dobro da largura. Nenhum gato doméstico conseguiria alcançar a marca com as mandíbulas, mas levarei a cicatriz para o túmulo.
Cada gato é único. Então, qual é o sentido de tentar criar um roteiro para ele? Nunca pensamos em nós mesmos como “resgatadores” dos nossos gatos. Meu velho gatinho cinza e branco, meu gatinho da vala, era meu porque outras pessoas vieram e adotaram seus irmãos mais delicados ou mais bonitos. Você fica com o gato que o mundo lhe dá.
Isso se você convencer o mundo a lhe dar um gato. Tudo isso aconteceu dois anos e meio atrás, no auge da pandemia, quando era difícil sequer entrar em contato com qualquer pessoa. Nós mandávamos as solicitações e não voltava nem uma palavra – muito menos um gatinho. Por fim, a Sociedade Americana para a Prevenção da Crueldade contra Animais (ASPCA, na sigla em inglês) escreveu para dizer que estava organizando um evento de adoção e tinha um horário disponível na mesma semana. Tudo bem se a gente escolhesse um gatinho só.
E então lá estávamos nós, numa sala cheia de gaiolas arrumadas, para tomar uma decisão. Muito gentilmente, sem pressão, o pessoal da ASPCA perguntou se estaríamos dispostos a aceitar um gato com problemas médicos. Um deles tinha um olho ferido, que requeria remédios todos os dias e talvez precisasse ser removido. Outros tinham membros machucados ou faltando.
A ideia de fazer uma escolha parecia absurda e errada. Qualquer gato na sala poderia ser adorável – ou talvez terrível. Um branco com manchas se ergueu sobre as patas traseiras e nos chamou, doce e amigável, mas e se ele gritasse assim a noite toda? Com certeza outra pessoa diria sim a um gatinho tão simpático se nós não disséssemos. Mas aí o pessoal da ASPCA abriu a porta de uma gaiola para uma gatinha magra, toda preta, com olhos amarelos. Ela saiu ronronando. Na gaiola de cima havia uma gatinha preta quase idêntica, com os olhos dourados mais bonitos que já vi e uma pata a menos. Mas ela parecia com sono, e a gatinha com quatro patas estava ronronando para nós.
Ouvi dizer que é mais difícil encontrar um novo lar para gatos pretos. Ninguém poderia dizer que essa gatinha não precisava de nós. Não havia nenhuma razão no mundo para não ficar com ela.
Então, foi ela. E aqui está ela. Numa inspeção mais minuciosa, o pelo entre os olhos e as orelhas era ralo e nunca cresceu direito, de modo que a pele aparece em estranhas manchas brancas e prateadas. Seu rabo faz uma curvinha na ponta – possivelmente herdada, junto com o gene da melanina, de um ancestral siamês.
Pouco tempo depois de a trazermos para casa, eu me deitei ao seu lado para tirar um cochilo, e ela estendeu as patinhas dianteiras e abraçou meu pulso, puxando minha mão para sua testa enquanto cochilava. Só mais tarde entendi que isso significava que ela queria me morder, mas estava com sono demais para abrir a boca.
Ela adora a gente, bem de perto, desde o instante em que sobe na minha mesa e atrapalha o começo da minha rotina de trabalho batendo o rabo no teclado, até o momento em que pula na cama do menino mais novo para se enfiar nas cobertas na hora do boa noite. Mas ela se afasta se alguém tenta chegar perto. Meus gatos antigos, mesmo os mais selvagens, se aconchegavam com a gente à noite. Ela só aparece no nosso travesseiro quando tem certeza de que já estamos dormindo e não vamos mais nos mexer.
Com certeza você já ouviu alguém explicando como são seus gatos. Esta aqui dá saltos ágeis para se lançar de lado nas paredes, bate a cabeça nas coisas, tropeça no alto do piano e cai nas teclas. Ela faz emboscada para atacar meus tornozelos – as patas macias, as garras sempre retraídas. Certa vez, apareceu uma barata e ela, confusa, me ajudou a encurralá-la. Outra vez, ela comeu uma aranha sem querer, tentando descobrir o que era. Nós oferecemos tanto ração úmida quanto seca, mas ela quase sempre despreza as duas.
Para que nada disso soe muito fofo, voltemos ao vidro quebrando. Ou ao barulho agora familiar do saleiro batendo no chão. Ou ao som das garras se enganchando no rodapé no meio da noite – até fazer “tek”. Talvez um segundo gato na casa a distraísse, mas duvido. Sua ideia do que é brincadeira – na casa da minha mãe, ela dá voltas completas no quarto por cima dos móveis, como uma criança fingindo que o chão é lava – se confunde com sua malandragem. É a gata que temos. Não consigo imaginar outra. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
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