Já pensou fazer uma visita ao seu médico e, no lugar da receita de um remédio, receber um gato que promete resolver seus problemas? É mais ou menos essa a premissa do livro Vou Te Receitar Um Gato, da escritora Ishida Syou, romance que foi um dos best-sellers do Japão em 2023 e que já foi vendido para mais de 20 países.
Não é segredo para ninguém que os pets - e, nesse caso, os gatos - são capazes de transformar a vida de uma pessoa, mas o livro leva essa ideia a outra patamar. Em um beco estreito de Kyoto, fica a clinica do médico Dr. Nike e de sua enfermeira, Chitose - um lugar que só pode ser encontrado por pessoas que realmente estão passando por um momento difícil e precisam de ajuda.
Ao escutarem as adversidades de seus clientes, eles receitam, é claro, um gato. Os pacientes logo estranham esse tratamento diferenciado, mas, aos poucos, começam a perceber mudanças reais em suas vidas causadas pelos felinos - não por mágica e nem efeito placebo, mas por ações dos animais que acabam tendo consequências positivas e inesperadas.
O livro faz parte da onda da healing fiction (”ficção de cura”, em inglês), histórias reconfortantes e que buscam trazer uma sensação de bem-estar ao leitor - saiba mais sobre isso aqui. Em Vou Te Receitar Um Gato, são cinco capítulos, com cinco personagens distintos, que têm suas vidas alteradas após serem receitados pelo Dr. Nike.
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A edição brasileira do livro, com tradução de Eunice Suenaga, chegou recentemente às livrarias brasileiras. Confira abaixo um trecho da obra.
Leia trecho de ‘Vou Te Receitar Um Gato’’
Quando chega ao final do beco escuro, Shūta Kagawa observa o prédio onde funcionam vários tipos de estabelecimento.
Depois de tanto procurar, finalmente o encontrou. A construção parecia ocupar o vão entre dois prédios residenciais.
— Será que é aqui mesmo? — murmura, perplexo.
“Por que ainda tem lugar que não aparece no GPS?”, pensou.
Mas até que fazia sentido. Os poucos raios de sol no céu nublado não iluminam aquele beco úmido, e o prédio é uma construção velha e suja.
— Afinal, que endereço é esse?
“Quioto, distrito de Nakagyō, avenida Fuyachō, subir, avenida Rokkaku, virar a oeste, avenida Tomikōji, descer, avenida Takoyakushi, virar a leste.”
Os moradores de Quioto costumam falar endereços dessa forma. Mesmo que as ruas tenham nome e número, eles insistem em indicar a direção também — leste, oeste, norte ou sul. É possível chegar ao destino seguindo as orientações, mas elas são tão vagas que os turistas ficam completamente perdidos.
Quando já estava prestes a desistir, depois de dobrar à esquerda algumas vezes e andar em círculos, encontrou a entrada do beco estreito.
“Por que esse pessoal de Quioto faz questão de ser tão vago?”
Para Shūta, que nasceu em outra cidade, os nomes das ruas parecem códigos. É como se os locais quisessem afastar quem é de fora.
No beco escuro, ele solta um suspiro.
“Não posso desistir agora”, pensou. Só porque o prédio é mal localizado, não quer dizer que os profissionais que trabalham ali sejam ruins. Talvez os prédios ao redor tenham sido construídos depois. Mas é um lugar no mínimo discreto.
A porta está aberta. Ele entra e não encontra o elevador, só uma escadaria nos fundos. Também percebe como o local é mal iluminado e está vazio. O edifício inteiro tem uma atmosfera meio assustadora. Enquanto segue pelo corredor, Shūta nota as placas nas portas. Lê vários nomes de empresas, afinal, é um prédio comercial. Todas parecem meio suspeitas.
“Será que vou acabar me juntando a uma organização criminosa que aplica golpes em velhinhos?” Shūta balança a cabeça para afastar o pensamento. “Vim aqui justamente para não acabar assim.” Ele sobe as escadas até o quinto andar e vê a placa com os dizeres: clínica kokoro.
A porta velha e maciça é mais leve do que imaginava. Quando ele a abre, fica surpreso ao ver que o interior está bem iluminado. Há uma portinhola no balcão de atendimento, mas não tem nenhum funcionário ali para atendê-lo.
— Com licença — chama ele, mas ninguém responde.
Será que estão no horário do almoço? Shūta não sabia o telefone nem o e-mail do local, por isso não tinha conseguido agendar uma consulta.
— Com licença! — chama novamente, mais alto dessa vez.
Ele ouve passos e uma enfermeira de pele clara e pouco mais de vinte e cinco anos aparece.
— Sim, pois não?
— Olá. Não agendei uma consulta, mas gostaria de falar com o médico.
— O senhor já é paciente? — pergunta ela, com um sotaque carregado de Kansai e a entonação tranquila. — Entre, por favor.
A enfermeira o leva até o consultório — uma sala simples, menor do que a área para fumantes da empresa onde ele trabalha. No cômodo, só tem uma mesa, um computador, duas cadeiras e uma cortina nos fundos.
“Essa é realmente a tal clínica renomada?” Shūta vai se sentindo mais inseguro a cada minuto que passa lá dentro.
Ele já se consultou com diversos psiquiatras, e todos trabalhavam em clínicas modernas e elegantes. Nenhuma ficava em um prédio velho e assustador como aquele. O atendimento precisava ser agendado com antecedência, e, assim que chegava, o paciente recebia um formulário que levava quase uma hora para ser preenchido. Mas nessa clínica teve a sorte de ser atendido antes mesmo de mostrar o cartão do plano de saúde.
A cortina se abre e um médico de jaleco branco aparece. É um homem franzino que aparenta ter mais ou menos trinta anos.
— Olá. É a sua primeira consulta aqui, certo? — pergunta o médico, sorrindo. Sua voz é um pouco aguda e anasalada, e seu jeito de falar é característico das pessoas de Quioto: simpático, mas sem forçar intimidade. — A propósito, como ficou sabendo da nossa clínica?
— Bem... — Shūta hesita. Pensa em mentir, mas, por fim, decide ser sincero. — Foi um amigo que me indicou, quer dizer, ele não é exatamente meu amigo, é um colega de trabalho, mas já saiu lá da empresa. Ele ficou sabendo pela cunhada, esposa do irmão mais novo, que descobriu por um primo. Um dos clientes desse primo tinha um cliente que se consultava aqui. Me falaram que é uma clínica muito boa.
No fim das contas, era tudo um grande boato. Não sabia nada além do nome da clínica, o endereço — que parecia um código secreto — e o andar em que ficava.
Seis meses antes, Shūta havia procurado um psiquiatra pela primeira vez.
Ele sabia que não iria melhorar de uma hora para outra, mas sentiu que precisava fazer algo a respeito. Tinha que se esforçar. Pesquisou as melhores clínicas na internet, foi a todas que ficavam perto de casa e do trabalho, esgotou todas as opções. Até que descobriu a Clínica Kokoro e decidiu dar uma chance aos rumores vagos e duvidosos. Só não esperava que ficasse num lugar tão escondido.
— Entendi. Na verdade, não estamos aceitando pacientes novos. Somos só eu e a enfermeira, é uma clínica bem pequena — explica o médico, num tom calmo.
Shūta fica decepcionado. Mais um psiquiatra incapaz de ajudá-lo. São poucos os médicos que realmente escutam os pacientes com atenção.
Quando Shūta está prestes a se despedir, o médico abre um sorriso maroto e o encara com um olhar de criança travessa.
— Mas vou abrir uma exceção, já que veio por indicação.
O consultório é tão apertado que os joelhos deles quase se tocam, mas naquele momento Shūta tem a impressão de que os dois ficam mais próximos ainda. O médico se vira para a mesa e começa a digitar algo no teclado.
— Poderia me falar seu nome e sua idade, por favor? — A consulta começa de repente.
— Shūta Kagawa. Vinte e cinco anos.
— O que você está sentindo? — pergunta o médico tranquilamente.
Shūta fica nervoso. Já passou por essa situação diversas vezes.
Todos os médicos ouviam o que ele tinha a dizer e respondiam da mesma forma.
“Deve ter sido muito difícil para você.”
“Que bom que você veio.”
Alguns até eram atenciosos, mas depois prescreviam os mesmos remédios de sempre. Não eram os médicos que o ajudavam, mas sim os remédios para dormir que eles receitavam.
— Estou sentindo...
Insônia, zumbido no ouvido, falta de apetite...
Quando pensa no trabalho, Shūta sente dores no peito, dificuldade para respirar, e não consegue dormir à noite. Sintomas comuns que os médicos devem ouvir dos pacientes todos os dias.
“Tenho que explicar direitinho desta vez para conseguir sair dessa situação.”
Porém, sem pensar, Shūta acaba falando o que realmente tem passado por sua cabeça.
— Quero largar meu emprego.
— É mesmo? — pergunta o médico prontamente.
— Ah, não — diz Shūta, voltando a si. — Não é bem isso. Não quero largar meu emprego, quero continuar lá, só queria saber como. Eu trabalho numa grande corretora de investimentos, tem até anúncios na TV, mas o ambiente é bem tóxico.
— Entendi — diz o médico, e então sorri. — Vou te receitar um gato. Vamos aguardar e observar os efeitos.
Ele gira a cadeira e fica de costas para Shūta.
— Srta. Chitose, poderia trazer o gato, por favor?
— Está bem — ouve-se de trás da cortina, e logo depois aparece a enfermeira que Shūta viu na recepção.
Ele não tinha notado antes, mas ela tem um olhar intimidador, parece ter uma personalidade forte. É bonita, apesar de não chamar muita atenção. Ela o encara, desconfiada, e pergunta para o médico:
— Dr. Nike, podemos confiar nele?
— Podemos, sim — responde o médico, despreocupado.
“Que lugar estranho”, pensa Shūta. “Até o nome do médico, Nike, é diferente, parece nome de gato.”
A enfermeira coloca a caixa de transporte em cima da mesa, sem dizer nada, e volta para trás da cortina. A caixa é simples, de plástico, com abertura lateral.
E dentro realmente tem um gato.
Shūta fica atônito. Não consegue entender o que está acontecendo. Ele olha atentamente o animal à sua frente.
É um gato de verdade.
Um gato comum, cinza, como qualquer outro. Está escuro dentro da caixa, mas Shūta consegue ver os grandes olhos redondos e dourados do felino o observando com desconfiança.
— Sr. Kagawa, fique com ele por uma semana, vamos acompanhar os efeitos.
— Hã?
— Vou te dar a receita. Entregue na recepção.
— Tem receita?
— Claro — responde o médico. A conversa parece fluir normalmente, mas a situação não é nada normal.
— Isso aí é um gato mesmo? — pergunta Shūta, enquanto olha o bicho dentro da caixa.
— Sim, é um gato — responde o médico com naturalidade.
Claro que é, o que deixa Shūta mais inseguro ainda.
— Um gato de verdade?
— Aham. Desde antigamente dizem que gatos são o melhor remédio. Ou seja, seus efeitos são muito mais eficazes.
Isso não faz sentido.
— Aqui está a receita. — O médico passa um papel a Shūta, que continua confuso. — Entregue na recepção e volte daqui a uma semana. Poderia me dar licença? O paciente com hora marcada está esperando.
Ao ver o médico apontar para a porta, Shūta volta a si.
— Ah, entendi! Vocês trabalham com aquela tal terapia com animais? — pergunta ele.
Shūta não estava esperando nada disso, mas agora havia entendido. O médico permanece indiferente enquanto olha para ele, provavelmente analisando sua reação.
— Surpreender o paciente faz parte do tratamento? É por isso que não tem informações sobre a clínica em lugar nenhum, agora entendi. Pelo visto dá certo, porque fiquei chocado. Uma clínica que receita gatos... Que curioso.
Shūta aproxima o rosto da caixa e observa o gato, que o fita de volta sem desviar os olhos esbugalhados. Não entende nada de bichos, mas sorri ao se dar conta de que o animal também deve estar confuso.
— Ele é muito bonitinho, mas acho que não gostou de mim.
— Hum. Deixe-me ver.
Dr. Nike se aproxima e seu rosto quase toca a bochecha de Shūta.
O médico, entretanto, continua agindo com naturalidade.
— Está tudo bem, né? — pergunta ele, aproximando a ponta do nariz da caixa e olhando fi xamente o gato. — Bom, ele acabou de dizer que está tudo bem.
— Não acho que ele tenha dito isso... acho que ele está com medo.
— Você acha? Deixe-me ver. — O médico se aproxima novamente. Eles fi cam muito perto de novo, o que deixa Shūta constrangido. Dr. Nike se dirige ao gato: — Está com medo? Não, né?
Está tudo bem, certo?
Em seguida, levanta o rosto rindo.
— Ele disse que está tudo bem.
— Não, não é isso. É que eu não estou acostumado com animais. Ele não vai querer ficar com alguém como eu. Acho que não vai dar certo.
— Não se preocupe. Até para quem não está acostumado, o efeito do gato é infalível. Tenho outro paciente me esperando, pode me dar licença? — diz o médico, sorrindo.
Ele se levanta e coloca a caixa de transporte no colo de Shūta.
— Mas...
— Aguardo o senhor daqui a uma semana. — Dr. Nike encerra a conversa.
Mesmo sem entender o que está acontecendo, Shūta sai do consultório carregando a caixa.
Não há nenhum paciente esperando na recepção, então ele olha para trás e vê a enfermeira acenando da portinhola do balcão de atendimento.
— Sr. Kagawa, poderia vir até aqui?
— Ah, sim.
“Será que estão me pregando alguma peça e tem uma câmera escondida em algum lugar?”, pensa.
Ele se aproxima, hesitante, e encara a enfermeira.
— A receita, por favor — pede ela.
Ele entrega e a enfermeira vai para os fundos.
A caixa é pesada e Shūta se atrapalha ao carregá-la.
A sensação é estranha. Não cuida de um animal desde o ensino fundamental, quando sua turma se revezou para cuidar de um coelhinho no pátio da escola. Mas, apesar da cara de bravo, o gato permanecia quieto. “Como é bonzinho”, pensou Shūta.
Quando volta, a enfermeira lhe dá uma sacola de papel. Shūta solta uma das mãos com que carrega a caixa, que acaba inclinando e fazendo o gato deslizar para o lado.
— Opa, desculpe — diz ao gato. Em seguida, dirige-se à enfermeira: — O que tem aqui dentro? Está pesado.
— São suprimentos. Tem o manual de instruções também.
Leia com atenção — responde ela, sem rodeios.
Ele abre a sacola para dar uma espiada e vê dois potinhos de plástico e um saco que parece conter ração. “Então é disso que as pessoas precisam para cuidar de um gato?” Tudo aparenta ser de boa qualidade, o que deixa Shūta mais apreensivo.
— Até quando vamos continuar com essa simulação? Vocês não estão exagerando um pouco?
— Se tiver alguma dúvida, pergunte ao doutor. Melhoras. — A enfermeira baixa os olhos para focar em outra tarefa.
— Por favor...
— Melhoras.
— Por favor...
— Melhoras.
Shūta deixa a clínica carregando a caixa e a sacola de papel, extremamente confuso. “Afinal, o que está acontecendo?”, pensa ele.
No corredor, um homem com uma postura amedrontadora passa por ele e abre a porta da sala ao lado.
Shūta sente o olhar de desconfiança do homem e aperta o passo para sair dali.
Foi uma tarefa árdua descer a escada carregando a caixa e a sacola pesada. Ao sair do prédio, sente o odor de mofo que paira no beco. O cheiro é real. E o peso que carrega nas mãos também.
Seu ex-colega de trabalho havia falado que era uma clínica muito boa. Ele descobriu o lugar por meio da cunhada, que ficou sabendo por um primo... Quanto mais pessoas descobrem a clínica, mais os rumores crescem.
Shūta achou estranho a encenação continuar mesmo depois de sair do prédio. A enfermeira não veio correndo atrás dele, e nenhum diretor surgiu gritando “Corta!”, como nas gravações de um filme. Será que é uma espécie de tratamento alternativo? Ou uma fraude? Como alguém feito ele, que mal consegue cuidar de si mesmo, acabou sendo obrigado a cuidar de um gato?
“Como fui parar naquela clínica?”, pensou Shūta. De repente, ele se viu rindo de toda essa situação.
Vou Te Receitar Um Gato
- Autora: Ishida Syou
- Tradução: Eunice Suenaga
- Editora: Intrínseca (224 págs.; R$ 49,90 | E-book: R$ 34,90)
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