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Opinião | De Madagascar ao Miojo

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Foto do author Carlos Castelo

"Já tenho Santorini. Próxima compra: Machu Picchu."

(Pexels)  

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São os Cristóvãos Colombos digitais. Para eles, viagens não são apenas uma forma de lazer, mas uma busca quase espiritual. O problema é que acabam torrando todas as economias nessas empreitadas. Mas por quê, Geração Z?

Dizem que sair pelo mundo é uma maneira de se conhecer melhor. Para essa Geração, contudo, isso significa descobrir quantas poses diferentes dá para fazer na frente do Taj Mahal sem repetir nenhuma. Não é autoconhecimento, mas garantir que os outros os conheçam.

A torre inclinada de Pisa não importa em termos arquitetônicos, contanto que consigam fazer aquela manjada foto segurando-a com a mão. Afinal, ninguém viaja 10.000 quilômetros para não alimentar o feed do Instagram.

É impressionante como a Geração Z consegue sobreviver a um ano inteiro comendo miojo só para reservar uma passagem para a Tailândia. O senso de prioridades deles é algo digno de um estudo sociológico. Quer dizer, por que investir num plano de aposentadoria quando se pode gastar em um safári, em Madagascar, alimentando lêmures? O amanhã pode esperar - e, pelo visto, o aluguel da quitinete também.

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E não vamos esquecer o financiamento dessas aventuras. A Geração Z dominou a arte da economia emotivo-chantagista. Em outras palavras: crowdfunding para a viagem dos sonhos (deles). É fácil pedir ajuda aos amigos com frases como "realize meu sonho de conhecer o Nepal", enquanto eles mesmos mal conseguem pagar o Uber. É basicamente ser o Robin Hood dos tempos atuais: tirar dos pobres amigos para enriquecer o feed das redes sociais.

Um dos grandes argumentos para tal obsessão por turismo é a ideia de transformação pessoal. Você já viu um jovem Geração Z voltar de um retiro espiritual no Butão sem dizer: "Eu sou outra pessoa agora"?

A ironia é que, ao invés de serem transformados pela experiência, muitos transformam as viagens em coisa descartável. É quase como uma lista de compras: "Já tenho Santorini. Próxima compra: Machu Picchu". Não importa se saberão a diferença entre a civilização inca e o doce baklava, desde que a foto tenha filtro.

No fundo, a verdade é simples: viajar para a Geração Z não é o deslocar-se. Não são as pessoas, a paisagem, ou a vivência. É o storytelling. Quem precisa sentir o momento quando pode postá-lo? Uma catedral gótica não é apreciada a olho nu, mas sim através das lentes do celular. Um prato típico só é degustado depois de ser fotografado de todos os ângulos possíveis, com a legenda "vivendo la dolce vita".

E assim, eles criam uma narrativa de si mesmos editada e com curadoria própria. A vida real pode ser um caos, mas no Instagram os Z estarão vibrando alto em um rooftop em Dubai, enquanto tentam pagar a fatura do cartão parcelada, em 48 vezes, com juros brasileiros.

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Por outro lado, talvez devêssemos ser mais compreensivos com a Geração Z. No fim das contas, eles só querem um pouco de adrenalina antes que o colapso climático transforme Bora Bora em Atlântida. Se isso significa comer pão com ovo por meses para bancar uma viagem, quem somos nós para julgar?

Só fica aqui um lembrete para esses viajantes: às vezes, a melhor trip é desligar o iPhone, sair de casa e explorar a pracinha do bairro. Ali, ninguém precisa de efeito vintage nos cliques - e o cachorro-quente só custa 10 reais. Não vai render muitos likes, mas, pelo menos, sobra algum para pagar a roupa de baixo.

Opinião por Carlos Castelo

Carlos Castelo. Cronista, compositor e frasista. É ainda sócio fundador do grupo de humor Língua de Trapo.

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