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Opinião|Fim de feira

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"Nem estou acreditando que amanhã vamos comer carne. A última vez foi no Natal".

(Carlos Castelo no Dall-E)  

O casal de velhos descia os andares de um soturno prédio num enferrujado e barulhento elevador. O marido disse à esposa:

- Nem estou acreditando que amanhã vamos comer carne. A última vez foi no Natal.

- Também -- disse a velhinha -, para isso é preciso uma ocasião especial. E dinheiro economizado.

- Trouxe a lista de compras? - perguntou o marido.

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- Trago de memória, respondeu a senhora. Que tal começarmos pelo açougueiro da feira, hein?

Com um andar débil foram se dirigindo para a tosca barraca de carnes. Atendeu-lhes um rosado senhor, mãos respingando sangue.

- Então, o que deseja o simpático casal?

Ambos passaram a fazer um escrupuloso exame nas carnes expostas. Em seguida, o velhinho cheirando um pedaço de fígado indagou:

- De onde veio esta partida de carne tão fresca?

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- Ah! O senhor não está a par do acidente na casa dos Lopes? - perguntou o açougueiro.

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- Faz tempo que não saímos do apartamento. Passamos aqui porque amanhã nossos netos vêm nos visitar.

O açougueiro se aprumou no balcão e, tomando fôlego, começou a narrar com orgulho:

- A nossa banca sempre vendeu mercadoria de primeira. Quando o casarão dos Lopes desmoronou, levando toda a família, nós fomos os primeiros a requisitar à prefeitura os corpos. Em comércio, a concorrência não pode ser colocada em segundo plano...

A anciã remexeu em alguns pedaços de carne atacados pelas moscas e disse:

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- Que tal um pedaço de músculo, meu velho?

- Ah, minha senhora - interrompeu o açougueiro - o músculo gasta um absurdo de gás para cozinhar. Valeria a pena pagar um pouco mais e levar o lombo do cunhado dos Lopes. Dá um ensopadinho pra neto nenhum botar defeito...

- Nossa nora vai trazer os filhos e fica para o almoço. Melhor levarmos outra coisa. Ela detesta ensopadinho - cortou o velhote.

O açougueiro cofiou o bigode e decidiu oferecer outra mercadoria

- Quem sabe, alguns dedos?

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- Quanto custa? - indagou o velho pegando um polegar e o apalpando de leve.

- 63, o quilo.

- Isso é um absurdo! - vociferou o ancião. -- Por uma dúzia de dedos! Onde está a fiscalização que não baixa em sua banca? Não valem nem 30. Carne de segunda... 35 e olhe lá.

- Vá lá, vá lá... Eu vendo pra não perder a freguesia. Querem que eu tire as unhas?

- Por 35 eu quero aproveitar tudo - disse o senhor.

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- Mais alguma coisa?

A velhinha estirou o pescoço na direção do balcão.

- Poderia fazer um pouco de carne moída com a batata da perna do Lopes-pai?

O açougueiro se abaixou e retirou da câmara frigorífica um bolinho de carne enregelado.

- Sabia que tinha moído agorinha mesmo uma perna dele! - disse, sorrindo.

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A velhota, então, apontando para um cartaz pregado acima da tabela de preços, berrou:

- Ali não está escrito que a carne deve ser moída à vista do freguês?

O marido, irritado, socou o balcão metálico.

- Ainda mais essa! Quer nos passar carne vencida, é? Pensa que somos esclerosados?

Houve uma tentativa, por parte do açougueiro, de tentar um acordo. A contravenção do estabelecimento, porém, estava ali, à luz do Sol. O casal, furibundo, gesticulava.

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- Olhe - disse a senhora, como se rogasse uma praga a um cão -, eu conheço um programa de rádio que tem serviço de utilidade pública. O nome do senhor e do seu estabelecimento vão estar lá amanhã bem cedo, viu?

Em seguida, enfiaram os pacotes de carne sob as axilas e sumiram na direção do antigo prédio. Ainda se ouviu o velho ou a velha resmungar:

- Esses mercenários não estão respeitando nem o apetite delicado dos netinhos da gente...

Opinião por Carlos Castelo

Carlos Castelo. Cronista, compositor e frasista. É ainda sócio fundador do grupo de humor Língua de Trapo.

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