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A virada de ano foi na casa do biso Apolônio, o patriarca da família.

(grok)  

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A virada de ano foi na casa do biso Apolônio, o patriarca da família. Aos 92 anos, ele não só era o mais velho como também o mais pregador de peças e piadista de todos.A noite começou como previsto: Apolônio, como sempre, ocupando a cabeceira da mesa, de onde disparava seus comentários jocosos.

Enquanto a contagem regressiva para o Ano Novo se aproximava, o velho começou a se queixar de um peso no peito. Ninguém deu bola. Ele era o homem que havia sobrevivido a duas guerras mundiais, uma queda de telhado e à receita de sarapatel de tia Nena. Peso no peito? Isso era outra gozação dele. Mas o biso insistia.

"Se eu morrer, quero que me enterrem de bermuda e havaianas, nada de terno", anunciou ele. Foi então que tia Nena, meio ofendida, retrucou: "Para de falar de morte, Apolônio! Todo ano é essa conversa besta. Vai assustar as crianças."

Mas ninguém parecia se importar muito com o patriarca, até que o relógio marcou 00h00. Apolônio olhou para o teto, suspirou fundo e proclamou: "Bem, é isso."

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E então, como que obedecendo a um cronômetro, o ancião caiu para trás na cadeira, o copo de cidra ainda na mão e um sorriso de triunfo e tédio. A casa mergulhou em silêncio.

"Ele está brincando, né?", disse a prima Odete, famosa por seu talento em apontar o óbvio.

"É claro que está", respondeu tia Nena. "Ele vive fazendo essas papagaiadas. Ano passado fingiu um AVC quando o Silvério colocou Roberto Carlos na caixinha de som. Coisa mais sem graça..."

Mas não. Dessa vez, Apolônio não estava fingindo. Ele tinha partido dessa para uma melhor.

Quando percebemos que ele estava, digamos, para sempre offline, instalou-se um pandemônio na casa. Primo Silvério, que nunca foi conhecido por sua capacidade de tomar decisões rápidas, sugeriu que o levássemos até a varanda para tomar um ar. Tia Nena desmaiou, embora tenha escolhido um canto da sala com almofadas posicionadas para amortecer a queda. E primo Juvenal, sempre prático, começou a vasculhar os bolsos do velho, "só para garantir que ele não está carregando nada que não deva ao velório".

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Enquanto isso, lá fora, os fogos estouravam no céu. Era o universo nos lembrando que, apesar de tudo, a festa tinha que continuar. E assim foi. Decidimos, em um raro momento de consenso familiar, que não ligaríamos para a ambulância antes da sobremesa. "Ele ia querer assim", disse tia Nena, já recuperada de seu desmaio. Confesso que ninguém teve coragem de discordar. Apolônio tinha um carinho especial pelo doce de laranja da prima Odete, e parecia quase um sacrilégio não honrar sua memória.

Quando por fim ligamos para o serviço funerário, a moça do outro lado da linha informou: "Só podemos recolher o corpo amanhã cedo. Vocês vão precisar manter aí até lá."

Apolônio passou o restante do Réveillon entre nós, sentado em sua cadeira favorita, cercado por velas improvisadas que sobraram da decoração natalina. Alguém, inspirado pela ironia da situação, colocou um chapéu de praia em sua cabeça.

No velório, de bermudas floridas e havaianas, Apolônio parecia mais feliz que todos os presentes de terno e gravata. Tia Nena, ajeitando pela décima vez o arranjo de flores, suspirou: "Até morto esse consegue ser o mais palhaço da família."

 

Opinião por Carlos Castelo

Carlos Castelo. Cronista, compositor e frasista. É ainda sócio fundador do grupo de humor Língua de Trapo.

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