Tá, todo mundo tem o direito de errar. Mas, certas decisões, precisam ser muito bem analisadas antes de se bater o martelo. Tudo bem que tenho a sorte de contar com uns amigos de verdade, que me apoiam em momentos difíceis. Tudo bem que sou alimentado, tomo banho de sol e faço exercícios. Posso dizer que, perto de muitos, sou um privilegiado.
Mas dói quando me lembro do passado recente. Eles me pegaram ainda um nenezão. E aí foi o grande engano. Por não poderem ter filhos começaram a me tratar como um bebê. Muita gente acha ridículo quando digo isso, mas tiveram a manha de comprar um carrinho e me levavam pra passear num parque. Ela beijava todo dia a minha boca e me deu uma coleção enorme de coleiras, tinha até uma Channel.
Fui me acostumando àquela vida de pet-shops, vacinas importadas e viagens. Com eles conheci a Europa, a Austrália, a Ásia.
No meu aniversário convidavam os cãezinhos dos parentes e amigos e faziam um bolo gigante de ração. Depois do "parabéns a você" era aquela zona.
Não é porque não os vejo mais que vou dizer que são uns cretinos. Conseguiram várias cadelas classe pra eu cruzar. Isso não é qualquer um que faz pelo outro.
A coisa degringolou com a chegada do Lúcio e do Rodriguinho. Ela pensava que, por um problema que tinha no útero, não podia pegar cria. Mas acabou emprenhando e vieram os gêmeos.
Julgaram que eu podia ficar com ciúme e machucar os meninos. Sinal de que não me conhecem mesmo, eu nunca faria nada com os filhos de quem paga as minhas contas.
Só sei que um dia o carro do pet-shop, em vez de me levar pro apartamento, me trouxe pra cá. Um beagle chamado Eurico, que ficou meu brother e divide a casinha comigo, diz que sou poliana. É porque agradeço ainda por eles terem me colocado num asilo de animais. E não, de repente, pegado uma estrada, aberto a porta do automóvel deles, e me soltado - como muita gente faz. Ou me mandado pra uma fábrica de sabão: pelas chagas de Cristo, não!
Aqui ninguém beija minha boca, me dá coleira de grife, mas estou longe de ser maltratado. Se a gente é considerado o bicho mais fiel que tem pro homem, por que eu iria desvirtuar a minha raça? Sou gato? Não, prefiro ser grato.
Só acredito que eles poderiam ter avaliado melhor a questão. Deviam ter feito tipo uma experiência, me colocado junto com os moleques e sacado a minha reação. Se eu vou lá e meto a dentadura na bunda deles, ok, me mandem pro canil da Polícia Militar. Agora, se eu fico na paz, tô com os vermífugos em dia, podiam ter falado: "Dixie, vamos te dar uma chance, mas segura a onda com os nenês da gente."
No fundo, tenho pensado bastante, e esse pessoal compra cachorro porque é como ter filho sem a parte da responsabilidade. A gente não passa de um band-aid na vida dos caras. Quando eles se curam, nós vamos pra lixeira.
Ah, quer saber, o papo tá bom, mas vão à merda que senti cheiro de cio no pedaço. Au, au, mas que caudinha linda é aquela, hein? À luta, cachorrada, que o negócio é viver o presente e rosetar.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.