Dicas de como se meter na vida alheia.
Sempre li diários. Os dos outros, pois tenho dificuldade em organizar os meus. Um misto de preguiça, desorganização e náusea em relembrar determinados acontecimentos devem ser a causa da aversão.
A mania pela leitura das confissões alheias começou, faz um bom tempo, numa passagem por Londres. Num enorme sebo subterrâneo, próximo à St Paul's Cathedral, encontrei The Diaries, de Evelyn Waugh. Trouxe o catatau para casa e o devorei.
Logo em seguida caíram em meu colo as confidências (mezzo revelações, mezzo pastiche) do filho de Waugh: The Diaries of Auberon Waugh - a turbulent decade 1976-1985.
Peguei gosto pelo estilo. Já fui enfileirando outros livros e me metendo na existência de terceiros. Foi assim com os Diários (1909-1923), de Franz Kafka; Diários (1935-1136), de Eunice Penna Kehl (incrível relato de uma "mulher comum", se é que me entendem) e os três tomos de Os Diários de Emílio Renzi. Este, o laboratório do escritor Ricardo Piglia que, por vezes, supera algumas de suas obras consagradas.
Recentemente, descobri uma editora, fundada em 2018, chamada Chão. Ela possui o seguinte escopo: "incentivar o estudo da memória nacional mediante a publicação, principalmente, de fontes primárias, ou seja, relatos, diários, cartas, depoimentos, memórias e crônicas de viagem".
O livro de Eunice Penna Kehl, mencionado acima, foi uma iniciativa da Chão.
Dentre seus lançamentos me chamaram ainda atenção Roupa suja (polêmica alegre) - Onde se faz o panegírico de alguns homens honrados da política republicana e O pasquim do Calambau - infâmia, sátira e o reverso da Inconfidência Mineira.
O primeiro é um raro documento do sempre (injustamente) esquecido escritor Moacyr Piza; o segundo, o único exemplar que restou das três cópias de um pasquim veiculado no pequeno arraial de Calambau, no interior de Minas Gerais, no ano de 1798.
Gente rica: cenas da vida paulistana, de José Agudo, também é um baita achado. Saído do forno em 1912, o pequeno romance, ou crônica longa, é uma sátira impiedosa à elite paulistana do período.
Em outra oportunidade escreveremos mais sobre tais obras aqui neste modesto chão lítero-jornalístico.
Por outro lado, não se pode falar em memória e depoimento sem relacionar Diário Confessional, de Oswald de Andrade. Com organização do crítico Manuel da Costa Pinto, suas páginas revelam um Oswald bem diferente do que está nas apostilas do Anglo Vestibulares. Mais do que o enfant-terrible modernista, com o futuro das letras pátrias equilibrado entre os dedos, nos deparamos com um ex-milionário de pires na mão.
Boa parte dos apontamentos menciona dívidas, papagaios (bancários, não da fauna brasílica), pedidos de favor a autoridades etc. É bem útil, contudo, a toda gente conhecer a dolorosa realidade oswaldiana. Principalmente, os poetas pós-doutorandos em Facebook, que se acham o último Ezra Pound da prateleira. Se sobrou um destino desses para O.A., imagina para quem faz literatura, a quatro mãos, com o ChatGPT.
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