EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Psiquiatria e sociedade

Opinião | Black Mirror - uma tentativa de entender a quarta temporada

A 4a temporada de Black Mirror continua falando de nós. Gostemos ou não.

PUBLICIDADE

Foto do author Daniel Martins de Barros
Atualização:
 Foto: Estadão

Ano novo, temporada nova. Como milhões de pessoas, nas últimas semanas comemorei não apenas as festas de fim de ano, mas também a chegada da 4a. temporada de Black Mirror, da qual sou fã confesso. As críticas que li sobre essa nova temporada estão mais negativas - parece que as pessoas se frustraram um pouco. Mas é impossível se manter no topo a todo momento - e agora que Black Mirror já acumula 19 episódios, é muita inocência acreditar que todos poderiam ser homogeneamente geniais, inovadores, surpreendentes.

PUBLICIDADE

A maior diferença que notei é que os seis novos episódios estão mais concentrados em poucos temas - no fundo, exceto um, todos falam de neurotecnologia. Três histórias (USS Callister, Hang the DJ e Black Museum) expandem as implicações da codificação total do cérebro, o que possibilitaria o download (e upload) da consciência humana. Já presente em episódios como San Junipero e em White Christmas, essa tecnologia que permite criar clones virtuais, dotados de senso de identidade própria, é avaliada por novos ângulos. Dos três episódios restantes, dois (ArkAngel e Crocodile) retomam a tecnologia apresentada em The Entire History of You (Toda a Sua História): o acesso a nossas redes neurais que registra (ou resgata) tudo o que a pessoa vê e ouve, tornando eternas nossas memórias. Só o pós-apocalíptico Metalhead escapa desse eixo, retratando um mundo no qual os seres humanos são caçados por misteriosos cães-robô.

Como os episódios não são de fácil assimilação - há que se digeri-los por um tempo, refletir, digerir - compreender as nuances do que se vê ali não é tarefa rápida. Resolvi então escrever sobre cada um dos capítulos, para ajudar em meu próprio processo digestivo.  Claro que as reflexões contêm spoilers, então siga em frente por sua conta e risco.

USS Callister

Um programador brilhante fica rico criando um jogo multiplayer, mas vive frustrado por não ser reconhecido por seus funcionários - todos vêm seu sócio, que faz a parte comercial da empresa, como chefe. Ele cria então uma versão paralela desse jogo, e leva para lá clones (virtuais) dos empregados. Nesse universo paralelo, contudo, ele assume o papel de um comandante cruel, torturando quem não o louva e obedece. Muitas pessoas vivem vidas paralelas no mundo virtual, livres das frustrações que o mundo real impõe a todos nós. Mas imagine um sujeito absolutamente frustrado a quem fosse dado poder absoluto sobre os outros. Sim, estamos falando de um personagem de ficção, mas dá um certo medo pensar que tipo de comandante nós nos tornaríamos.

Publicidade

ArkAngel

Se você não tem filhos, esse episódio é apenas interessante. Mas se tem, é um exercício profundo de autoavaliação. Na tentativa de manter sua filha segura, uma mulher instala nela o sistema ArkAngel, que além de rastrear seus passos por GPS, monitora seus sinais vitais e registra tudo o que ela vê e ouve. Conta ainda com um filtro anti-estresse, que ao detectar aumento súbito de cortisol torna a visão embaçada, impedindo-a de ver cenas supostamente traumatizantes. Se você pensou no helicopter parenting, essa tendência rodear os filhos a todo instante, livrando-os dos perigos do mundo, o autor da série também pensou. Por mais que saibamos que isso é tanto prejudicial como inútil, a tendência pode ser tão forte que é difícil se segurar, como mostra a protagonista. É bom mesmo então imaginar tudo o que pode dar errado.

Crocodile

Dizem que os crocodilos choram quando devoram suas presas - mas que se trata de mero reflexo por compressão das glândulas lacrimais, não é dó ou piedade. Eles precisam se alimentar, afinal, não tem outro jeito. Filmado na Islândia, onde não existem crocodilos, imagino que o título faça referência a suas famosas lágrimas. A protagonista se vê levada a cometer uma série de crimes para encobrir um acidente do passado que poderia arruinar sua reputação. Ela mata um ex-namorado para que ele não fale nada, mas o crime é descoberto por uma investigadora que acessa suas memórias. Mata então a investigadora e vai atrás de seu marido, para que não haja testemunhas. Após assassiná-lo ouve o choro de um bebê e decide por também matá-lo, para evitar que os registros visuais da criança possam incriminá-la. Só se esquece de acabar com o porquinho-da-índia da família, o que custará caro. Sim, ela chora. Não é uma assassina profissional atuando por prazer. Mas, como os crocodilos, ela não vê outro jeito. E nós, veríamos alternativa quando precisássemos manter nossas memórias privadas?

Hang de DJ

Publicidade

Esse talvez seja um dos poucos episódios otimistas de toda a série. Muitas pessoas já recorrem à tecnologia para encontrar o par ideal. É o que os protagonistas desse episódio fazem. Mas nesse futuro o sistema é bastante determinista, obrigando casais a se formarem por tempo pré-determinado, impondo os rompimentos e inícios das relações. Mesmo que burlar o sistema possa custar a vida esse casal se rebela para ficar junto. Quando fazem isso, descobrimos que na verdade eles são clones virtuais. As pessoas "originais" fizeram o upload de suas consciências num serviço de relacionamentos, e o software correu mil simulações como a que acompanhamos ao longo do episódio. E em 998 das mil eles se rebelaram para ficar juntos. Logo, têm grande chance de se darem bem no mundo real. Trata-se, portanto, de um otimismo à la Black Mirror: nos rebelamos contra a tecnologia para nos mantermos humanos. Mas a tecnologia conta com isso - então ela vence? No fim mantemos nossa humanidade nos rebelando contra a tecnologia, e também graças e ela.

Metalhead

Mais parecido com um exercício de estilo, acompanhamos nesse episódio os esforços de uma mulher para roubar uma carga e depois escapar da perseguição de um cão-robô que tem o único objetivo de eliminá-la. A tensão é grande, e quase total ausência de diálogos só aumenta a expectativa pelos desdobramentos dessa caçada. No final do episódio descobrimos que a tal carga roubada era um ursinho de pelúcia, que ela queria dar para um sobrinho - que nunca é mostrado - sofrendo com uma doença terminal. O tema do homem contra máquina ganha contornos épicos de humanidade contra tecnologia. Os cães, afinal, lembram muito os robozinhos sempre anunciados como nos novos bichos de pelúcia pela indústria de brinquedos.  Mas no fim eles acabam mesmo é se interpondo entre nós e o aconchego que sempre será nosso desejo último.

Black Museum

Se a ideia dessa temporada era explorar as consequências da transferência de consciência para fora do corpo, nesse episódio três novos ângulos são apresentados de uma vez. O museu de que fala o título é uma coleção de objetos ligados a crimes. O primeiro é uma touca de transferência de sensações - com um implante cerebral, um médico passa a sentir as mesmas dores de quem veste a toca. Quando sente um senhor morrer, contudo, passa a sentir prazer (crescente) com a dor. O que o levará a se tornar um criminoso em busca desse prazer. (Curiosidade: essa história é inspirada num conto de Penn Jillette, da dupla de mágicos Penn and Teller). O segundo é um urso de pelúcia no qual habita a consciência de uma mãe morta por atropelamento - seu viúvo tentou mantê-la dentro da própria mente por um tempo, mas era torturante para ele a ausência total de privacidade, e para a ela a ausência total de controle. E o último - e mais arrepiante - é a consciência de um condenado à morte que, uma vez retirada de seu corpo, permite a criação de um holograma senciente que pode ser novamente eletrocutado pelos visitantes do museu, numa condenação eterna. O plot twist é que a protagonista desse episódio é filha do condenado, e usará as três tecnologias para se vingar do dono do museu.

Publicidade

 

Não, acho que Black Mirror não piorou. Só que dessa vez, em lugar de explorar as possibilidades distópicas de novas tecnologias para nos fazer pensar sobre nós mesmos, optou por outro caminho. Aprofundou - talvez ao máximo - os limites de duas das tecnologias que mais nos aterrorizaram nas temporadas anteriores. O que, diga-se, serve bastante bem ao propósito de nos fazer refletir sobre elas.

Nem sempre gostaremos de tudo o que vemos em Black Mirror. Afinal, nem sempre gostamos do que vemos no espelho.

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.