Um sonho antigo. É assim que a modelo Eloá Rodrigues, moradora de São Gonçalo, no Rio de Janeiro, define o caminho que a levou para o Miss International Queen, o ‘Miss Universo’ trans, que aconteceu na Tailândia neste sábado, 25. Estudante de Ciências Sociais na Universidade Federal Fluminense, Eloá precisou enfrentar a falta de recursos financeiros para cruzar o oceano e competir com outras 23 candidatas de diversos países.
Apesar de não ter ganhando a competição, o interesse pela carreira de miss, segundo Eloá, surgiu durante sua transição de gênero. Com o objetivo de mudar a própria história, a modelo começou a se inscrever para concursos de beleza e, por quatro anos consecutivos, teve que lidar com negativas acompanhadas de comentários desagradáveis. “Eu me inscrevi em 2014, 2015, 2016 e 2017 no antigo Miss T Brasil e não fui selecionada em nenhum desses anos porque falavam que eu não tinha o perfil de miss”, conta.
Para compensar as tentativas frustradas, a primeira conquista da modelo ocorreu em 2020 e proporcionou a classificação no Miss International Queen. O concurso, que ficou paralisado durante dois anos por causa da pandemia, voltou a acontecer neste ano e oferece um prêmio de THB 450.000, que equivale a R$ 67.500 - cotação de 24 de junho- além de um troféu e parcerias VIPs.
“Eu sempre tive o sonho de estar nesse lugar, mas pra uma pessoa que não tem muitos recursos financeiros, que saiu da periferia, a gente acaba achando que esse sonho nunca vai deixar de ser sonho, sabe? E quando foi chegando cada vez mais perto de eu conseguir concretizar esse sonho, eu ficava: caramba, não é possível que eu vou estar lá depois de tanto tempo que eu sonhei, de tanto que eu me empenhei, de tanto que eu acreditei”, relata Eloá.
Há dez dias vivendo a experiência da disputa por uma coroa mundial que representa as mulheres trans, a participação de Eloá no concurso repercutiu na imprensa nacional após ela desfilar vestida de Nossa Senhora Aparecida em uma das etapas da competição. De acordo com a modelo, a vestimenta da padroeira do Brasil foi utilizada no desfile de traje típico oficial e já tinha sido escolhida antes mesmo de ela ser oficialmente eleita para participar do Miss International Queen.
“Eu tinha em mente que queria levar algo que representasse o Brasil de alguma forma e que as pessoas que estivessem assistindo se conectassem automaticamente, sem muita explicação. Quando fui eleita, sentei com a organização do concurso e coloquei pra eles que eu tinha esse sonho, eles compraram a ideia na hora, porém, tinha essa questão de muitas pessoas, principalmente religiosos, não entenderem esse lugar, porque eu li alguns comentários dizendo que eu estava sexualizando a santa. Na verdade, eu sou devota de Nossa Senhora”, comenta a miss.
Apesar das críticas, Eloá diz que não levou os comentários em consideração, pois não teve a intenção de utilizar o traje de maneira depreciativa, e sim como uma homenagem. “O resultado é que saiu em vários lugares e a grande maioria das pessoas tem entendido o recado que eu quis passar, de que uma pessoa preta, uma pessoa trans pode sim usar referências religiosas e não de forma pejorativa, depreciativa. Então eu estou muito tranquila, muito feliz que a grande maioria pessoas conseguiram entender a mensagem que eu quis passar”, comemora a modelo.
Realizações e desafios
Maior concurso de beleza para pessoas trans do mundo, Eloá conta que o Miss International Queen é composto por diversas etapas com provas preliminares que são realizadas até o dia da grande final. Durante o concurso, as modelos ficam confinadas cumprindo o calendário da competição, dividindo-se entre testes e entrevistas para veículos de imprensa do país.
Na Tailândia, a modelo diz que está vivendo a experiência de se sentir uma celebridade. “Em todo lugar que nós vamos, seja público ou privado, as pessoas querem parar para tirar fotos, conversar e perguntar como é a nossa existência no nosso país. Então, isso realmente é uma experiência fantástica que eu vou levar para o resto da minha vida, porque aqui eu sou literalmente uma celebridade e, principalmente, sendo uma mulher preta, careca, que saí de um país onde a taxa de execução de pessoas trans é a maior do mundo”.
Apesar da realidade vivida no concurso, Eloá conta que as oportunidades para pessoas trans no Brasil ainda não alcançaram um patamar ideal. Segundo ela, o país tem um cenário muito complicado e desafiador para pessoas transexuais que querem viver de arte. “Sendo uma pessoa trans e negra, realmente muitas portas foram fechadas simplesmente por eu ser quem eu sou, óbvio que tem uma movimentação sendo feita, tem lugares sendo construídos e pensados para a minha existência, mas infelizmente ainda tem essa questão do preconceito, a questão da barreira, da porta fechada”, finaliza.
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