Quando Glauber Rocha morreu, em 1981, aos 42 anos, a primogênita Paloma, filha do cineasta com a atriz Helena Ignez, tinha 21 anos. Já aos 12, participou de Paloma, Paloma, um diário de bordo filmado em Punta Del Este, registro emocionado de um encontro familiar. A matriarca, dona Lúcia, a irmã de Glauber, Anecy Rocha, e seu marido Walter Lima Jr., atravessaram clandestinamente a ponte de Foz de Iguaçu para encontrar o diretor, na época exilado na Europa. Paloma protagoniza as cenas principais, e a câmera - ora com Glauber, ora com Walter - capta imagens espontâneas daquele momento especial para o clã dos Rochas. A história está no site Tempo Glauber (www.tempoglauber.com.br), que traz sua filmografia comentada, manuscritos, desenhos e muitas fotos, entre elas, a do polêmico encontro com o presidente João Figueiredo, em 1975, fato que o imolou politicamente. "Guardo lembranças de seu amor, carinho e generosidade, mesmo nos momentos difíceis", diz Paloma, de 47 anos, também cineasta. Das memórias de infância, narra duas passagens tipicamente glauberianas . "Ele me matriculou numa escola inglesa, de formação protestante, no Rio, para que eu aprendesse a língua dos colonizadores e, assim, não me deixasse ser colonizada. Só que eu tinha apenas 3 anos de idade." Foi expulsa do jardim de infância de uma escola em Ipanema pela resposta inocente, mas tomada como uma afronta pela professora. "Quando ela perguntou a cada um dos alunos o que o pai fazia, eu disse que o meu era comunista." Relembra ainda um gesto tresloucado do diretor, que só não teve um desfecho trágico graças a Roque Silveira, fiel escudeiro e misto de iluminador, eletricista, maquinista, assistente de direção, ator e tesoureiro. A cópia de um filme é composta por um plástico - a película - e uma emulsão que contém acetato de prata. Numa ocasião, Glauber pediu a Roque que extraísse a prata da emulsão para dar um colar de presente a dona Lúcia e também que vendesse a película para as fábricas de vassouras... "Roque, claro, guardou o material e em 1986 lançou o filme No Tempo de Glauber, dando uma continuidade ao trabalho feito em A Idade da Terra, montando as imagens já filmadas conforme a idéia inicial de Glauber." LENTA AGONIA A morte do diretor em Sintra, Portugal, doente e empobrecido, abalou a família. "Morreu com 50 dólares no bolso, sem carro, com três ou quatro camisas e abatido por sucessivos golpes, como a morte da irmã, Anecy, do pai, a reação da crítica ao seu último filme, A Idade da Terra, no Festival de Veneza, em 1980, e com os ataques pessoais que sofreu de patrulhas ideológicas." Pior, o desaparecimento precoce do maior representante do Cinema Novo interrompeu um ciclo e deixou no ar questões em aberto, como a repercussão negativa de seu último trabalho em Veneza. A partir de 1981, começava a luta da família para preservar a obra do cineasta. Com a apaixonada dona Lúcia Rocha à frente, foi aberto o Tempo Glauber, centro cultural que ocupa um casarão de 110 anos, no bairro de Botafogo. Além dos filmes, em processo de restauração (dez longas e oito curtas), integram o acervo fitas de vídeo, livros, poesias, textos e desenhos, papéis - estes jogados no lixo, mas dona Lúcia os recuperou, passando-os a ferro. Mãe de duas filhas, Sarah, de 24 anos, estudante de Jornalismo, e Helène, de 23, formada em Ciências Políticas em Lyon e residente no Canadá, Paloma tem um currículo prolífero. Estudou Filosofia, largou o curso para fazer teatro em Salvador, desiludiu-se com a carreira artística e voltou à universidade para estudar Biologia. Mas logo retomaria o cinema. "Abri uma produtora com o meu nome e, em 1987, fiz o vídeo Alvorada Segundo Cristo, baseado em um poema de Glauber, publicado no Correio Braziliense. Em 1990, em parceria com Goffredo Telles Neto, filho de Lygia Fagundes Telles, dirigi o documentário Narrarte, sobre Lygia." Veio o Plano Collor e inviabilizou os projetos da produtora. Por um período, conciliou dois empregos, na Riofilme e na TVE do Rio. O desafio seguinte foi trabalhar na Globo. "Todo mundo chorava o cadáver de Glauber e lá não tinha isso, eu era uma funcionária comum, até porque muitos não gostavam dele." Depois de nove anos como assistente de direção em algumas novelas, nos programas Os Normais e Casseta e Planeta, afastou-se por um problema de saúde, quando conheceu o cineasta Joel Pizzini, seu atual companheiro. Saiu da emissora, envolvida com a restauração do filme Terra em Transe e disposta a reatar os nós soltos de A Idade da Terra, que, segundo ela, foi filmado com uma urgência febril pelo pai, como se fosse seu primeiro filme. "Sequer houve tempo para um debate filosófico e político." VENEZA, DE NOVO Vinte e sete anos depois, Veneza se redime e presta um tributo ao longa de 160 minutos, que gira em torno de quatro personagens ou, segundo o cineasta, "os quatro Cavaleiros do Apocalipse que ressuscitam Cristo no Terceiro Mundo." A convite do diretor do Festival, Marcus Miller, a cópia digital, estalando de nova, com as cores recuperadas, foi apresentada na edição de setembro de 2007, juntamente com o documentário Anabazys, de Paloma e Pizzini. Anabazys, que significa ascensão em grego, não é um making of nem um trailer de A Idade da Terra, como explica a cineasta. Tem vida própria e, pode-se dizer, é um filme sobre o pensamento de Glauber. O documentário - premiado este ano no Festival de Brasília - mostra gravações de diálogos inéditos do diretor, extraídas das 60 horas encontradas do material bruto não aproveitado. Usa também cenas de quase todos os outros longas do cineasta baiano, como Cabeças Cortadas, filmado na Espanha, e Câncer. "Anabazys é composto de 11 núcleos autônomos, como proposta de Glauber, que abordam desde a concepção, interpretação, figurinos e trilha sonora com música ao vivo da Orquestra Mística da Bahia, até a polêmica provocada pelo longa em Veneza." Defensor ferrenho do cinema de autor, intuitivo e antenado com as novas tecnologias que se seguiriam, Glauber dialoga com a juventude por meio de seus filmes. "Na Mostra Internacional de Cinema deste ano, onde A Idade da Terra teve uma apresentação especial, depois da sessão, ouvia-se coisas do tipo: ?eu amo Glauber?, ?eu amo Mick Jagger?. Em Brasília não foi diferente e os jovens diziam: ?mas que siderado!?" É do cineasta a frase que resume o seu fértil processo de criação: "Eu não tenho medo de criar, se tiver engenho e arte vou em frente. É necessário não ser babaca, pois a babaquice é a maior inimiga do artista."
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