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Opinião | Análise da Lei Joca e a força da opinião pública

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Por Cris Berger

Em abril deste ano, o Brasil acompanhou perplexo a morte do cão da raça golden retriever, o Joca, no porão da GolLog, que faz parte da companhia aérea GOL; a qual já teve um incidente semelhante da cachorrinha sem raça definida Pandora; que estava sendo transportada também no departamento de bagagem; e ficou 45 dias perdida.

Cris Berger e Ella na cabine do avião em um dos seus 18 voos juntas. Foto: Arquivo pessoal

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A mudança vem com a dor

Talvez dois casos trágicos sejam poucos perante as 80 mil viagens bem sucedidas em 2023. Segundo a ANAC (Agência Nacional de Aviação Civil) por ano, 72 mil animais de estimação são transportados a bordo da aeronave, na caixa de transporte, e 8 mil no porão como excesso de bagagem ou carga viva.

Se estatisticamente os números dos casos fatídicos são pequenos, moralmente a força da opinião pública é gigantesca e provoca debates no setor. Uma pena que a morte e sofrimento alheios sejam as molas propulsoras.

Um levantamento realizado pela Mars Petcare mostrou um gráfico dos últimos 10 anos e revelou que 2024 foi o ano com mais projetos de lei mencionando animais de estimação no Congresso brasileiro. E no mês da morte do Joca, eles aumentaram.

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O fato é que a revolta após a morte do Joca, última fatalidade registrada até o momento, tornou-se um incômodo tão grande que agitou as águas paradas do universo da aviação brasileira em relação às famílias multiespécies, onde cães e gatos assumem papéis de filhos. As empresas que fiscalizam a aviação, políticos e companhias aéreas tiveram que colocar o bem-estar animal em pauta. Fruto disso é a "Lei Joca". Ponto para nós.

Temos que fiscalizar

Guarde estes nomes: Lei Joca e Código de conduta - PATA. Se eles serão efetivos? Ainda não sabemos. Mas uma coisa é certa, algo foi feito. E, agora, a opinião pública deve seguir exigindo mudanças. 

A Lei Joca, que ainda não é uma lei e, sim, o projeto de lei número 4152/2024, protocolada no dia 30 de outubro, precisa ser sancionada pelo presidente para se tornar uma obrigatoriedade e de fato vigorar. Ela terá o intuito de regulamentar o transporte aéreo de animais domésticos no Brasil, que diga-se de passagem, até então não tinha nenhuma normativa. Dá para acreditar?

O PATA que significa: Plano de Melhorias do Transporte Aéreo de Animais Domésticos faz parte do Código de Conduta e uma "versão brasileira" do LAR (International Air Transport Association), o qual cumpre o papel de ser um manual de bom procedimento da IATA (Associação Internacional de Transportes Aéreos). Na prática: vai orientar as companhias aéreas a rastrear os animais em tempo real, ter médicos veterinários nos aeroportos e facilitar a comunicação entre os tutores e as cias aéreas. Ações que não existiam antes no Brasil.

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Desde a morte do Joca, o PL e o plano de melhorias estão sendo trabalhados pela ANAC, Ministério de Porto e Aeroportos, Deputado Federal Fernando Marangoni e Deputado Estadual Rafael Saraiva. E, atenção, são eles que trabalham para nós e nos devem satisfação. Portanto, é nosso papel acompanhar e cobrar. 

O SELO poderá nos levar à cabine?

Atualmente, voar na cabine do avião somente é possível para cães que caibam dentro de uma bolsa de transporte compatível com o espaço abaixo da poltrona. Ou seja, bem pequenos. E para os cães guias, que auxiliam deficientes visuais. 

Animais como a Ella, que tem 18 quilos, apenas poderão voar se tiverem uma decisão judicial despachada por um juiz, o qual entende que a presença do pet é fundamental para o equilíbrio mental do passageiro, em outras palavras, que este cão tem o papel de suporte emocional. Além dos cães de serviço, que devem seguir o mesmo caminho para garantir suas presenças a bordo, cumprindo as tarefas que foram treinados a executar.

Portanto, há uma gama expressiva da sociedade que almeja a possibilidade de voar a bordo, mas não pode. Para esta fatia do mercado, a "Lei Joca" seria a chance de acessibilidade.

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Em um primeiro olhar, não encontramos na Lei Joca a obrigatoriedade do embarque de animais na poltrona do avião e concluímos que o jogo segue perdido, mas ao escutar o deputado Rafael Saraiva, podemos nutrir uma esperança baseada no selo "Empresa Aérea Amiga dos Animais", que incentiva as companhias aéreas a transportarem animais a bordo" em troca da simpatia e fidelidade dos pais de pets (ou seja seu dinheiro), a conquista de premiações e benefícios fiscais.

Nas palavras dele: "A lei regulamenta o bagageiro e cria o selo, que fomenta os voos pet friendly. A cia aérea que aderir a ele, vai disponibilizar um percentual mínimo de trechos aéreos para voos pet friendly. Melhorar o porão é o passo para chegar na cabine. A partir do momento que a gente cria este selo, a próxima briga é regulamentar. Essa vitória, por mais incompleta que pareça ser, representa mais dignidade, saúde e bem-estar, respeito e principalmente conscientização em relação aos animais. Claro que eu queria mais e vamos conseguir." 

Gosto de pensar na disputa comercial das companhias aéreas em conquistar essa fatia gorda de consumidores; que são pais de pet e levando seus filhos a bordo ou não; vão preferir a empresa que se intitular pet friendly. Vejo a estratégia do Saraiva como válida. Darei meu voto de confiança a ele e cobrarei resultados. Espero que você faça o mesmo.

Educação canina

A pet Ella da raça sharpei, com 18 quilos, voou 18 vezes dentro da cabine do avião e esteve 20 dias dentro de um hospital quando a minha mãe e o meu pai estavam internados. Portanto, eu sei o quão bem pode se comportar um cachorro educado e treinado. Isso é incontestável. Nada e ninguém pode anular o que a Ella nos mostrou e este é seu grande legado. A pergunta é: todos os cães podem ser assim?

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O adestrador Paulo Serrati opina que apenas uma ínfima parte dos tutores se preocupam em educar seus cães e não acredita que as companhias aéreas abrirão mão da segurança nos voos, porém concorda que o comportamento do pet é decisivo: "Um cão devidamente adestrado com certeza reduz drasticamente a questão de insegurança de voo e faz com que seja, na minha visão, tranquilo a viagem na cabine!"

Portanto, tão importante quanto a Lei Joca, o código de conduta (PATA) que melhora o transporte no bagageiro e deixa as regras bem claras e o SELO que fomenta a competitividade financeira do mercado, precisamos da regulamentação do trabalho de um adestrador. Como pontua Serrati: "Hoje os cães estão mais presentes na nossa vida cotidiana do que nunca. Fala-se de família multiespécie, há mais cães do que crianças nos lares brasileiros e, na contramão disso tudo, a profissão que visa a educação, bem-estar físico e emocional do animal não é reconhecida".

Posicionamento das cias aéras

Entrei em contato com a LATAM, GOL e AZUL e perguntei seus posicionamentos sobre a aplicação do PATA e do Selo Empresa Aérea Amiga dos Animais. Todas me responderam rapidamente, reproduzo abaixo as respostas: 

A LATAM sempre segue todas as regras e determinações regulatórias de todos os países onde opera e também já promove a melhoria contínua do seu transporte de PETs. A LATAM já pratica as recomendações do Plano de Melhorias do Transporte Aéreo de Animais Domésticos (PATA) que são baseadas nas regras estipuladas no Live Animal Regulations (LAR) da Associação Internacional de Transporte Aéreo (IATA).

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A Azul informa que suas operações já estão adequadas às diretrizes nacionais e internacionais para o transporte de pets, priorizando a segurança operacional. A Companhia só realiza o transporte de cães e gatos nas cabines das aeronaves, já não permitindo anteriormente o transporte nos porões.

A GOL está ciente das novas determinações divulgadas pelo Ministérios de Portos e Aeroportos. Tais regras estão em análise interna, sem prazo para conclusão. Por ora, o transporte de animais no porão da aeronave segue suspenso. 

A Latam e a Gol não responderam sobre o selo até o fechamento desta reportagem. A Azul disse que no momento só irá comentar sobre o porão. 

Direitos e Deveres para voar na cabine

O receio do advogado especialista em causa animal, Leandro Petraglia, é as pessoas acharem que a Lei Joca foi aprovada e tudo está resolvido e não está. 

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Direitos e deveres, segundo Petraglia, devem andar juntos, portanto, se as pessoas têm o desejo de viajar, devem preparar seus cães para isso. "O dever é preparar o animal. Vão surgir ONGs que vão treinar os animais de graça para quem deseja viajar, o terceiro setor será despertado, haverá competitividade de mercado e terão opções de adestramento mais baratos", argumenta.

Atualmente, quem vive a dor e necessidade de viajar com animais a bordo são pessoas que vão mudar de país e possuem recursos para isso. Até alguns anos atrás, viajar de avião era um privilégio de quem tinha muito dinheiro. Hoje, vemos a bordo pessoas de distintas classes sociais. O preço das passagens aéreas tem uma variação imensa em um mesmo voo. A democratização da viagem de avião com um cachorro a bordo devidamente treinado também chegará para quem não tem tantos recursos.

Questão cultural e financeira

Estamos em uma revolução cultural. Décadas atrás não seria estranho ouvir: "Como assim os negros podem andar de ônibus? Ou "Como assim as mulheres podem votar?". O que nos leva a dizer: como assim os cães não podem viajar na cabine dos aviões? 

Na avaliação de Petraglia: "As companhias aéreas ainda não encaram o animal como membro da família. Para elas, ele é um problema. E ninguém quer resolvê-lo, é mais fácil limar enquanto pode. A companhia aérea encaixa o animal no espacinho que sobrou da aeronave, embaixo do assento. Falta a cultura da aceitação do animal como ente da família". 

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Quando as cias aéreas concluírem que elas não conseguirão mais ignorar o segmento, as mudanças vão ocorrer e, mais uma vez, cito o poder e força da opinião pública neste processo. A morte do Joca poderia ter sido sentida e lamentada, como foi, e acabar por ali, mas a mobilização das pessoas, fizeram que o mês de maio de 2024 tivesse recorde de projetos de leis protocolados e uma comissão fosse instalada. 

"As companhias aéreas nunca sentaram para discutir como transportar um animal. É muito mais rentável colocar pessoas entulhadas. Eles enchem um avião sem levar as pessoas que tem cachorro. Para treinar a equipe, adaptar a aeronave e talvez perder um assento envolverá custos. Elas não querem investir em algo que talvez não tenha devolutiva", ressalta Petraglia.

Aos olhos da justiça

Atualmente, as companhias aéreas podem escolher transportar cães na poltrona e optam por não levá-los. Ninguém as proíbe. Se você ver um animal que não cabe dentro da caixa de transporte na cabine é porque ele embarcou com uma medida judicial. A única exceção vale para cães de serviço psiquiátrico em rota de ou para para os Estados Unidos. 

A portaria 307 da Anac legitimiza o transporte "Animal de assistência emocional: animal de companhia, isento de agressividade, que ajuda um indivíduo a lidar com aspectos associados às condições de saúde emocional e mental, proporcionando conforto com sua presença" e deixa a cargo das companhias aéreas a decisão de embarque. 

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No artigo 46 da lei 13.146 do Estatuto PCD (Estatuto da Pessoa com Deficiência) diz: "O direito ao transporte e à mobilidade da pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida será assegurado em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, por meio de identificação e de eliminação de todos os obstáculos e barreiras ao seu acesso".

Demanda de mercado

A agência Sonho e Magia Viagens, desde 2021, transporta cães a bordo do avião e faturou, em 2023, 6 milhões de reais. O seu trabalho é orientar a melhor forma de voar para cada pet levando em consideração peso, tamanho, raça e função. Dos animais transportados, 75% vão na cabine, sendo que metade dentro da bolsa de transporte. Os outros 50% dividem-se entre cães de apoio emocional nas rotas permitidas, cães de serviço ou que obtêm uma medida judicial.  

"Lembro do caso do cão Panda, de suporte emocional, que estava no Brasil e sua tutora em Portugal. Ele embarcou com uma medida judicial; na companhia dos veterinários; na cabine por ser braquiocefálico e não pode ser despachado no porão da aeronave", lembra Ana Lechugo, proprietária da agência. 

Grande parte das viagens é por motivo de mudança de país. "Somos procurados porque as famílias não querem viajar sem o pet e estão dispostas a pagar o que for necessário para que possam viajar em segurança". Entretanto, não é raro encontrar casos de turismo pet friendly. A agência faz a reserva das passagens e cuida da documentação sanitária dos pets, que pode variar consideravelmente entre os aeroportos e países. 

"Pelo menos 15% das viagens são por motivo de lazer onde as pessoas fazem questão absoluta de estarem com seus pets. E sei que este número poderia ser muito maior caso não fosse tão complexo e limitador viajar com um pet no avião. Além da passagem, cuidamos dos roteiros locais". 

Por dia, a Sonho e Magia recebe cerca de 15 cotações, para voar com cães de maior porte, de pessoas que não cogitam a possibilidade de transportar seus cães no bagageiro. "O trade está deixando em cima da mesa cerca de centenas de milhares de reais ao não abraçar corretamente essa demanda. Somos membros da IPATA (International Pets and Animals Transportation Association), uma associação internacional de empresas de logística de animais, onde 90% é especializado em transporte por carga viva e ainda não percebeu o potencial deste mercado.", revela Lechugo.

Até 2020, o principal volume de viagens da agência era para lazer, quando começou a trabalhar com o público pet teve que contratar mais funcionários para atender a todos os pedidos. "As pessoas nos procuram porque querem ter a certeza de que nada sairá errado na viagem dos seus filhos. Sim, é assim que elas se referem aos seus pets. Então, aqui o nosso cliente não é o senhor Mendes, mas sim o Thor, o cão da família.

Holofotes nos cães

O que o Saraiva; como político; o Serrati; como adestrador, e o Petraglia; como advogado; têm em comum? Todos militam pelo respeito aos cães na sociedade, mesmo que com pontos de vistas diferentes. Assim como eu. E, mais uma vez repito: a Ella é a prova de que é possível, pois mostrou por 18 vezes com um comportamento exemplar, que lugar de cachorro é na cabine, contanto que não perturbe o voo nem cause perigo à tripulação, demais passageiros e animais embarcados.

Cada um luta dentro da sua ideologia, mas todos discutem um assunto: a inclusão pet, que sempre foi minha bandeira ao lado da Ella. O Saraiva busca através do selo mobilizar as companhias aéreas impulsionadas pela concorrência, o Serrati despertar para a importância da construção de cães equilibrados visando um convívio social seguro e o Petraglia conquistar, através da justiça, o direito de voo na cabine. 

Há anos sou uma entusiasta da conquista de voar a bordo do avião com os cães de maior porte e em uma poltrona e cada vez que voei com a Ella mostrei e provei ao mundo o quanto isso é possível.

Ainda temos um longo caminho até o PL virar lei, o PATA colocado em prática e o selo ser aderido por uma companhia aérea ou várias. Assim como, mostrar para os tutores a importância de educar seus cães, mas olhando para trás e vendo a trajetória do Guia Pet Friendly; com a Ella por 10 anos; sei que tivemos avanços. Falar, debater, questionar, buscar ver o lado positivo, avaliar o negativo e seguir exigindo melhores condições para os nossos cães é o combustível para mudarmos o mundo.

Opinião por Cris Berger
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