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Cris Berguer indica bons lugares para conhecer com seu melhor amigo: o cachorro

Opinião|Segue sendo nós

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Por Cris Berger

Eu poderia dizer que tu partiu de forma abrupta, mas desde a tua chegada lido com a tua saúde frágil. Sempre temi te perder e, possivelmente, isso tenha feito eu estar tão perto de ti. Logo entendi que meus olhos não podiam descansar um minuto sequer e ao longo destes 10 anos tu fostes minha maior prioridade.

Cris e Ella no Swan Generation em Porto Alegre. Foto: Bruna Rodrigues

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Era uma sina, um desafio, uma preocupação constante, um medo que eu tentava empurrar para o lado. Ella, meu amor, não é fácil ter um filho doente, a gente passa o tempo todo com o coração apertado.Ao mesmo tempo que existia o temor de te perder, eu me sentia honrada por cuidar de ti.

Ah! O teu comportamento sempre foi espetacular. Que bicho incrível!Quanta bondade, serenidade e tranquilidade tu tinhas... tu tens... luto com o verbo no passado porque não consigo aceitar tua partida.

Diferente de ti, sou agitada, inquieta e rebelde. A única coisa que nos separou foi a morte e até ela estou desafiando. Eu dizia que ias viver 20 anos, afinal, a minha dedicação era tão grande que nada ia nos pegar de surpresa. Eu tinha certeza de que íamos superar mais essa. E foi tudo tão rápido e cruel. Eu não vi chegando. Acho que ninguém viu.

Sinto paz em te escrever, ao resgatar a nossa história, é mais uma forma de te fazer imortal e quem sabe de eu conseguir sobreviver a dor de não de ter ao meu lado fisicamente.

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Quando teu coração parou de bater, me dei conta que éramos nós e que a partir daquele momento eu desintegrava. Era exatamente essa a sensação, não era a morte, pois ela seria um alívio. Era a falta de existência, mesmo estando vivo.

Quis desistir de tudo, do teu legado, do nosso trabalho, das lutas para conquistar um mundo onde os cães pudessem estar com seus pais humanos. Nada mais fazia sentido.

Nessa queda livre, escutei uma pessoa falar: "continue sendo nós", então, decidi que segue sendo nós. A tua morte física não precisa ser o fim, a separação, uma ruptura. Agarrei essa frase, com o todas as minhas forças e resolvi escrever este livro.

Capítulo 1

Foi uma noite agitada. Mais uma. Se bem que a anterior dormimos até a tarde. Dividimos a cama do hospital veterinário por 6 noites. Umas melhores do que as outras. Em todas, juntas. Ganhamos alta assistida, voltamos para casa. No meio da noite, fiz massagem na tua barriguinha e tu voltou a pegar no sono. Dormimos mais uma hora. Então, tu acordou ofegante. Resolvi adiantar nossa visita ao hospital para fazer os exames do dia.

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Estava chovendo e um pouco frio. Olhei a cama do quarto de casa e fiz planos de dormir a tarde toda abraçada em ti, depois da tua hemodiálise. Chegamos no hospital e fomos checar os sinais vitais. Nada parecia tão errado assim, a não ser o teu cansaço, que eu estava disposta a resolver com fisioterapia e vitaminas. Estávamos na fase 2, da recuperação, pois tu havia respondido bem ao tratamento.

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De repente, teu olho gira e o corpo treme levemente. Ali te perco. Teu coração para de bater. Eu vejo tudo, aviso a veterinária, te colocamos em cima da mesa de exames. Outros médicos são chamados e começam a massagear teu peito para te trazer de volta, mas em nenhuma das 10 tentativas tu responde.

Olho incrédula, clamo a Deus por um milagre. Nada acontece. Tu parte e me deixa ali. Deito ao lado do teu corpo, que agora está no chão. Ficamos conchinha por muito tempo. Passo a mão no teu corpo e falo no teu ouvido o quanto te amo. Peço para ir junto, me sinto incapaz de seguir sem ti.

Perco a noção do tempo. Não saio do teu lado. Como eu posso levantar e deixar teu corpo. Não acredito na tua morte. Peço então para chamar a Ana. Ela chega e senta ao meu lado. Fico um pouco mais deitada e, então, me sento. Seguimos acariciando teu corpo, beijando teu rosto. Perdemos a noção do tempo. Eu falo, choro, devaneio, me revolto.

Capítulo 2

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Temos que decidir se vamos te cremar. Não quero te receber em um potinho. Fecho olhos e imagino um túmulo com flores e um horizonte largo. Decido que quero te enterrar com direito a despedida e com a chance de ir te ver.

Chove, já é tarde. Tu nos deixou no começo da manhã. Peço para chamar a Su, ninguém sabe da tua partida, não consigo contar, não posso falar em voz alta, ainda espero um milagre.

Sei que a Su vai cuidar de tudo. E cuida. Partimos para Campinas, chegamos já está quase escuro. Tiro teu corpo do banco de trás do meu carro. Acomodo em cima da mesa e te velamos.

Visto-te com o pijama azul que estava dentro da minha mochila, encontro uma bandana com teu nome bordado no porta luva do carro. Depois acomodo teu corpinho dentro do caixão e te deito em cima da tua cama, te cubro com o cobertor.

Tu parece dormir. Apenas dormir. E estás linda e serena. Tu, que fostes elegante a vida inteira, nos deixou com rapidez, sem dor, foi como assoprar uma vela. Bonsour, minha guiazinha, que acordava e parecia que falava Bonjour.

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Capítulo 3

Em cima da tua casinha, prefiro chamar teu túmulo assim, tem uma árvore. Não é lindo?  O cara lá do cemitério queria te colocar dentro de uma gaveta, dessas que ficam uma em cima da outra. Eu protestei. Ele argumentou que estava chovendo e eu retruquei: me dá a pá que eu cavo. A minha filha ficará no chão, junto da natureza e eu vou me sentar ao lado dela muitas e muitas vezes para conversar.

Essa é a mãe que sempre lutou por ti, que te colocou dentro do avião. Essa é a mãe que sempre exigiu o melhor tratamento dos médicos, que pediu todos os exames, que gritou por rapidez e que lutou pela tua vida por 10 anos. E foram tantas batalhas. Fomos vencendo uma a uma. Até o dia 9 de julho quando teu coração parou de bater e fez o meu parar também.

Fiz questão de carregar teu caixaozinho. Estava escuro, o chão escorregadio. Fomos caminhando devagar, passando entre os demais túmulos de cães, todos enfeitados com pedras brancas. O João segurou de um lado e eu do outro. A Su e a Ana caminhavam junto de nós. Beijei teu rosto, mais uma vez, disse o quanto te amava. A tampa foi fechada.

Teu quartinho foi colocado no buraco, recém cavado embaixo da chuva. Sei onde tu estás, isso é fundamental. Estive ao teu lado o tempo todo ao longo destes 10 anos. Faria tudo de novo mil vezes mais. Prometi voltar para te ver assim que eu chegar da Patagônia, do extremo sul do Chile, de uma terra que eu adoro e visitei muitas vezes antes de tu chegar na minha vida e eu passar a sermos nós.

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Capítulo 4

Chego em casa cansada. Vejo teus remédios, fraldas e o pote com todas as medicações, que devem começar no dia seguinte. Abro a geladeira e encontro teus potinhos de comida. Encho 5 sacolas com coisas tua e coloco perto da porta de entrada da casa. Acho que dar tuas coisas vai tirar a dor do meu peito. Paro. Entendo que não há o que fazer. Terei que encarar a tua ausência e isso me aterroriza. Depois de um banho quente, deito e durmo.

Acordo às 4h30 da manhã e não suporto ficar mais um minuto sequer na cama. Nessa hora tu olharias para trás, esticarias o pescoço para me ver e irias te espreguiçar. Eu te encheria de beijos e diria "bom dia, meu amor". Vou até a sala, sento no meu computador e procuro uma passagem aérea para o Chile. Escolho um país que tu não poderias entrar. Mais uma vez tento me iludir. Meu desejo era embarcar no próximo voo, mas compro a passagem para um dia depois. A nossa casa sem ti virou deserto. Não suporto ficar nela. Não concebo uma vida sem ti.

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