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‘YouthForia’ e racismo cosmético: por que discutir subtom é tão importante?

Em meio a produtos que não atendem às expectativas da comunidade negra de forma igualitária, o maquiador Tássio Santos e a empreendedora Rosângela Silva repensam a inclusão dentro do mercado da maquiagem

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Foto do author Maria Eduarda Camargo

Óxido de ferro preto, ou Preto 11. Um pigmento de preto puro, usado em máscaras de cílios e sombras. Esse é o único ingrediente de coloração na base da marca YouthForia em sua tonalidade mais escura. Sete anos depois da Fenty Beauty, marca de Rihanna, lançar 50 tonalidades de base no mercado internacional, YouthForia retoma a discussão do racismo cosmético ao trazer uma base completamente sem subtons e que não funciona para peles retintas.

Youtuber Golloria testa base Youthforia no tom mais escuro e a compara com tinta preta Foto: Golloria Via Tiktok e Youthforia.co

A discussão veio à tona depois da resenha da influenciadora Golloria no Tik Tok, que comparou lado a lado a base da marca estadunidense YouthForia com tinta acrílica preta, mostrando que a diferença entre os produtos é quase imperceptível.

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A explicação do porquê a base da YouthForia não funciona em peles reais é biológica: quanto maior a presença de melanina, pigmento natural da nossa pele, cabelo e olhos, mais escura a coloração na região. O que vemos e chamamos de preto, na verdade é uma variação de pigmentos naturais em alta concentração. Bases como a da Negra Rosa, por exemplo, apresentam em seu tom mais escuro uma gama de tintas, como os óxidos de ferro amarelo e vermelho, que imitam a formação da melanina na pele.

A marca Negra Rosa, pioneira no mercado digital de bases para peles pretas aqui no Brasil, lançou em 2017 sua coleção de bases exclusivas em tons mais escuros. A fundadora da marca, Rosângela Silva, conta para o Estadão que o diferencial veio em realmente testar os produtos em peles reais: " Sempre tive esse olhar de tentar atender esse mercado [de maquiagem para peles negras], e realmente testar em mulheres negras para ver quais daqueles tons davam certo [...] Recebi muitos relatos dizendo que foi a primeira vez que uma base funcionava na pele [da consumidora]”.

“Tenho uma ligação muito forte [com a marca], porque eu faço parte da comunidade também. Eu tenho uma sensação de orgulho, porque eu sou primeiro uma consumidora, [e depois] fundadora”, completa Rosângela sobre sua identificação com a marca e com o papel de marcas de maquiagem que foquem na comunidade negra aqui no Brasil.

Rosângela Silva, fundadora e curadora da marca Negra Rosa, focada em produtos para mulheres negras Foto: Divulgação/Negra Rosa

Hoje, a linha de bases conta com 7 tonalidades, que vão do Dark, passando pelo Dark 1 até o 6, e englobam subtons frios e quentes para peles negras. Através do comércio digital e por meio de revendedoras, Rosângela explica que grande parte do público também se encontra na Negra Rosa. “A gente tem a revista [para as revendedoras], e todas as fotos são de mulheres negras. Muitas vendedoras vieram contar que era a primeira vez que se viam em todas as páginas. É um processo de reconhecimento e de pertencimento de ter uma marca que conversa comigo e me coloca em um patamar de beleza”, diz.

Rosângela, que lançou a marca na época como uma microempreendora, questiona também o papel de outras empresas no processo. “Se eu, como microempreendedora, consigo trazer esse produto, qual a dificuldade de grandes empresas atender ao público negro?”.

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Tássio Santos, maquiador profissional, influenciador e criador do canal Herdeira da Beleza, além de autor do livro Tem Minha Cor? Quando Maquiar se Torna um Ato Político, explica, em entrevista ao Estadão, que o mercado ainda precisa evoluir no entendimento do subtom. “Muitas vezes os laboratórios ficam presos em uma produção de 10, 20, 30 anos atrás, que não dá conta de sanar todas as nossas demandas [da comunidade negra]. É uma luta fazer com que eles entendam que precisam utilizar pigmentos azuis e verdes, por exemplo”, completou, referindo-se à produção restrita a subtons amarelados e avermelhados, que são os pigmentos normalmente utilizados para a construção da cor de produtos de pele.

Sobre a YouthForia, Tássio comentou que a construção do padrão de beleza e a falta de entendimento da comunidade negra como consumidora no universo cosmético deve ser considerada. “A gente tem que se questionar [sobre] qual o interesse da marca em lançar uma base desse jeito no mercado. Qual o objetivo eu não sei, mas é um retrato do quanto precisamos avançar no quesito inclusão e diversidade na indústria”. Ele relembra, durante a entrevista, a frase da portuguesa Grada Kilomba, escritora, teórica e doutora pelo Instituto Universitário de Lisboa (ISPA):

“No racismo, a recusa é usada para manter e legitimar estruturas violentas de exclusão racial: ‘Eles/elas querem tomar o que é Nosso, por isso têm de ser excluídos (as)’”

A Máscara, Grada Kilomba

O maquiador utiliza o termo racismo cosmético para explicar o caso. “A maquiagem faz parte do processo que embelezamento do corpo e a construção do poder passa pelo estético, então, deixar a gente [comunidade negra] nesse lugar ‘primitivo’ e do que é [considerado] ‘feio’ é também uma estratégia de perpetuação do racismo”.

O termo foi criado pelo maquiador, que apresenta há mais de seis anos o quadro O Tom Mais Escuro, em que testa os tons mais escuros nas cartelas de maquiagens em Joice Lima, modelo de pele retinta. Entre bases do mercado nacional e internacional, O Tom Mais Escuro, disponível em seu canal Herdeira da Beleza no YouTube, demonstra como as marcas entendem a importância de uma cartela de cores que realmente atenda todos os tipos de pele.

“A maquiagem vem muito como uma aliada na luta antirracista. Vem com uma oportunidade da gente reconstruir a nossa autoestima e valorizar a nossa pele. É um momento de diversão, mas também é um momento em que a gente pode se sentir melhor e, principalmente, reconquistar o nosso poder. Eu acredito muito na maquiagem enquanto instrumento para reconquistar o que um dia já foi nosso”, completa Tássio.

Joice Lima e Tássio Santos, que apresentam juntos o quadro "Tom Mais Escuro", do canal Herdeira da Beleza" Foto: @joice_010 Via Instagram

Quando questionado sobre sua experiência pessoal como homem negro dentro da maquiagem, ele relata também que o ideal de beleza da indústria se estende para outras áreas em sua vida. “A referência que eu tinha de um homem negro maquiado era uma referência que chegava até mim de maneira negativa. No momento em que reforçamos o padrão estético, estamos falando de uma beleza branca, mas também de uma beleza cis, jovem, magra”, pontua.

‘Tem minha cor? Quando maquiar se torna um ato político’

Após 12 anos de carreira no mercado de maquiagem, Tássio celebra a escrita do livro Tem minha cor? Quando maquiar se torna um ato político, explicando um pouco sobre o processo de idealização do livro, sendo um homem negro dentro da indústria: “Me sentia ‘desbravando a mata’, porque minhas referências vinham sempre do norte do globo, branco, ‘endinheirado’, cis. Sinto muito essa falta, de alguém como eu, falando de maquiagem”.

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O livro analisa a cultura da maquiagem brasileira através de marcas, padrões estéticos, e principalmente negritude. “Quem hoje tem sua pele representada nos cosméticos?”, finaliza Tássio.

Tem minha cor? (140 pg.) pode ser comprado na Amazon por R$ 59.

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