
De meados da década de 80 até 2010, as empresas do setor da moda mudaram. Aquelas que eram relativamente pequenas, de capital fechando, que atendiam mercados de nicho, tornaram-se marcas globais de propriedade de conglomerados de capital aberto. Em vez de vendas anuais de dezenas de milhões de dólares, as casas de moda passaram a contabilizar números na casa dos bilhões, encenando desfiles espetaculares que eram um grande atrativo para a clientela.
No novo livro “Gods and Kings: The Rise and Fall of Alexander McQueen e John Galliano” ("Deuses e Reis: Ascensão e Queda de Alexander McQueen e John Galliano", ainda sem versão em português), a jornalista de moda Dana Thomas relata a trajetória de altos e baixos dos dois estilistas britânicos.O período abordado na publicação termina em 2010 não por acaso, já que esse foi o ano marcado pelo trágico suicídio de McQueen. Logo em seguida, a obra do designer tornou-se tema de uma grande exposição no Metropolitan, em Nova York. Sucesso de público e crítica, a mostra volta agora ampliada no Victoria and Albert Museum, em Londres.Na entrevista abaixo, a autora Dana Thomas fala sobre a força do trabalho de McQueen, que reverbera até os dias de hoje.
No livro, você cita que um ex-namorado de McQueen disse que desde o início ele "ambicionava ser o melhor estilista entre todos”. Isso se realizou?
Ele desejava superar todos os seus predecessores e colegas. Acho que realizou esse desejo postumamente, quando foi inaugurada a exposição no Metropolitan que atraiu mais de 600 mil pessoas e se tornou a oitava mostra mais visitada de todos os tempos no museu
Por que a exposição foi tão popular?
Fiquei na saída do museu em Nova York perguntando às pessoas: “quem é você e porque veio ver a mostra?”. E as respostas foram muito interessantes: eram aposentados, estudantes, secretárias, trabalhadores da construção, homens, mulheres, idosos, jovens, pessoas de todas as raças, todos os credos. Muitos jamais tinham ouvido falar de McQueen. Alguns diziam que souberam do sucesso e entraram na fila para ver, outros que haviam sido levados pela esposa. E todos repetiam a mesma coisa: “Meu Deus! Que artista! Ele investiu todo o seu espírito criativo nas suas criações”. E não eram somente roupas - eram obras de arte. Há algo mais profundo em seu trabalho que ainda tentamos compreender. Ele usava as roupas como um veículo de comunicação. Poderia usar argila, madeira, pintura, pastel, filme. Mas como se formou em Saville Row na arte da alfaiataria, usava o vestuário como meio de expressão.
Parece contraditório, mas McQueen quebrou todas as regras da moda ao mesmo tempo em que as seguia. Faz sentido?Ele sabia quais regras devia quebrar. Há uma famosa frase de Picasso: “aos 14 ou 16 eu conseguia pintar como Rafael. Mas levei a vida inteira para aprender a pintar como uma criança”. McQueen conhecia as regras. Mas, como no caso das calças “bumpsters” (com a cintura extremamente baixa), sua ideia foi: “e se colocarmos a cintura extremamente baixa e fizermos alguma coisa arquitetônica para mantê-la no lugar de uma maneira que ninguém pensou antes?". Ele e sua equipe experimentaram até descobrir como fazer. E depois baixaram a cintura do casaco para harmonizar. Deste modo, mudaram o foco da atenção para um lugar diferente do corpo pela primeira vez desde a cintura alta do império, que ficava próxima dos seios da mulher. Foi o que ele fez na sua primeira coleção.
Você escreve que “as concessões que os estilistas eram forçados a fazer em nome da comercialização eram aviltantes” e que “o ritmo GoGo era insustentável e a destruição que causou foi estarrecedora” - muita bebida, dependência de droga e depressão. E se fosse o contrário? Teriam McQueen e Galliano sobrevivido como artistas independentes, produzindo alta costura para algumas senhoras extremamente ricas?
Não. Eles tiveram de firmar um pacto com o diabo para realizar o que queriam. Mas isso acabou sendo a sua ruína de McQueen. No início, ele trabalhava sem ganhar nada,a única maneira de receber alguma coisa era fazendo encomendas especiais para amigos. Foi por isso que aceitou firmar um contrato com o grupo LVMH e se tornar diretor criativo da Givenchy. Ele entendeu que seu emprego lá o ajudaria a financiar o que pretendia fazer em Londres para sua marca própria. Ele não só usou seu salário para fomentar sua empresa, como também levou os tecidos da alta costura para a capital inglesa. Nos anos 2000, já totalmente focado na grife dele mesmo, McQueen desfrutou de uma era de ouro, quando Tom Ford e Domenico De Sole, na época do grupo Gucci, compraram sua empresa. Domenico era aquele CEO do tipo patriarca, e realmente gostava de McQueen. E quando Ford e De Sole deixaram o grupo, o estilista passou por um período realmente difícil. Os novos dirigentes sabiam criar planilhas, planejar orçamentos de marketing e toda essas coisa de MBA, mas não sabiam como trabalhar com um artista como McQueen. O pacto com o diabo de repente ficou soturno e ameaçador para ele. Então McQueen tornou-se muito mais introspectivo e começou a usar os desfiles como se para um comentário social, em vez de ser uma representação da sua cólera interior ou da sua história pessoal. Começou a fazer coisas baseando-se em Darwin e na sobrevivência dos mais aptos. Eram todos ataques diretos contra as pessoas sentadas nas primeiras filas, mas elas não percebiam isto. Cada desfile parecia o capítulo de um livro que ele estava escrevendo. E você pode ver o conjunto da sua carreira e sua vida muito claramente. E ele estava desmoronando. Por isso, o trabalho era tão estupendo. Seu último desfile, Plato´s Atlantis, foi monumental e criativo, cultural e sociologicamente falando. Imagine uma peça realmente excelente, uma grande composição musical, ou uma pintura realmente incrível, um discurso espetacular . Ele planejava que este seria seu último desfile, de modo que colocou nele tudo o que tinha a dizer.
Mas não foi o último desfile. Quando ele se suicidou estava trabalhando num outro, “Anjos e Demônios”.
Que era realmente um réquiem.
Você escreve que McQueen impactou não só na moda, mas na sociedade. De que maneira?
É como perguntar como Picasso ou Matisse afetaram a sociedade em geral. Seus trabalhos foram tão espetaculares que ainda os citamos como referência e ainda nos lembramos deles. E acho que isso também ocorreu com McQueen. No primeiro desfile de alta costura da Givenchy, em 1997, ele fez uma coleção toda dourada e branca, baseada na ideia do Velocino de Ouro da mitologia grega. Foi atacado selvagemente pela imprensa de uma maneira que raramente vi. Críticas muito negativas. Porque não compreenderam. Ninguém compreendeu. Mas ele percebeu que a alta costura não era simplesmente para as socialites. Ele foi o primeiro a entender realmente que a alta costura não tinha mais ver apenas com o guarda-roupa de uma mulher. Seu tema era muito intrincado, complicado e engenhoso. Moderno demais. Recentemente, nesta última temporada um jovem estilista copiou exatamente em 99% um dos terninhos de McQueen, para sua coleção. Era um terninho branco, muito elegante. E aclamado como brilhante. Então alguém na plateia disse, “hei, já vimos este terninho antes”. Basicamente foi plágio. O que significa, na minha opinião, que levou mais de 15 anos para este terninho ser considerado “atual”. Antes ninguém poderia entender. Veja a que ponto McQueen estava na frente. E acho que vai continuar assim, As coisas que ele fez e que ninguém compreendeu acabarão entrando no nosso vocabulário.
Tradução de Terezinha Martino