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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião | crônica em linha reta

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Foto do author  Renato Essenfelder
Atualização:
 Foto: Estadão

arte: loro verz

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No Facebook nunca conheci quem tivesse uma espinha inchada. Quem se apertasse em busão lotado. Quem, às seis da tarde, expiasse seus pecados na linha vermelha do metrô paulistano. Quem cutucasse o nariz, quem, mal-humorado, respondesse de atravessado a um singelo "bom-dia".

Nunca ninguém sofreu diarréia, nunca um amigo virtual deu um calote. Nunca saiu humilhado, verdadeiramente humilhado, de um desencontro amoroso.

Ninguém mentiu, ninguém foi ingênuo - e, logo, desenganado. Há os traídos, e como os há, e multidões de indignados. Os loucos, os enciumados. Petistas, tucanos, rottweilers. As pessoas se lamentam, choram suas mágoas e se desesperam. Mas ninguém é ridículo. O ridículo, o verdadeiro ridículo, que causa risos até ao desavisado, foi extinto. Sumiu do aquário.

A estupidez, eu penso, é um mal curável. Está virtualmente acabada.

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A minha linha do tempo é uma passarela iluminada. Nela só trafegam anjos de pele acetinada.

E eu, eu que tenho sido tantas vezes porco e vil, que tantas vezes não abaixei a tampa da privada. Eu, que me demoro para sair da cama, que minto por preguiça resignada, que me acovardo e calo diante de tantas injustiças. Eu, que conto os meus trocados, que corro atrás das pessoas erradas, que inúmeras vezes consenti em ser humilhado. Eu, que afastei quem me amava, que não atendo o telefone dentro de casa, que cultivo tiques e manias desgraçadas.

Que fui feito de tolo pelos amigos, que fui explorado, que dependi da ajuda de estranhos ontem, hoje e novamente, que fui salvo pelos meus adversários. Humilhado. Eu, que dormi entre baratas no Arouche, que fui roubado, e, verdadeiramente enganado, silenciei.

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Estou farto de semideuses. Onde há gente nesta tela iluminada?

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*Fernando Pessoa, autor do Poema em Linha Reta, escreveu: "Toda a gente que eu conheço e que fala comigo / Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho, / Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida..."

O poeta foi uma antena da raça, antecipando um século de sonhos e angústias. Há cem anos, criou para si dezenas de perfis virtuais. Deu a eles nome, sobrenome, emprego, biografia. Eram chamados de heterônimos.

Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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