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Opinião | David Lynch, o cineasta que virou adjetivo (e se tornou imortal)

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Foto do author  Renato Essenfelder

Viva!

Como estão vocês?

Quero falar um pouco sobre um de meus cineastas favoritos, o recém-falecido e imortal David Lynch(1946-2025).

 

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Lost Highway (1997) foi meu primeiro contato real com o trabalho dele. Quer dizer, eu já havia visto Duna (1984) em alguma dessas zapeadas despretensiosas pela TV aberta, quando ainda era criança, e, apesar de ter ficado marcado pela inventividade colorida do filme, ele não é exatamente o melhor representante da filosofia e dos temas centrais do autor. Além disso, eu era novo demais para apreciar qualquer obra "adulta".

 

 

Com Lost Highway o caso foi totalmente diferente. Eu já tinha 17 anos de idade (um tímido e pretensioso miniadulto) e escolhera voluntariamente investir meu parco dinheirinho de estagiário para frequentar aquela sala de cinema onde o filme estreara -- uma das poucas de Curitiba que se dava ao luxo de exibir filmes assim, esquisitos.

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A sala estava quase vazia, como seria de se esperar, e pude apreciar sem reservas aquele desconforto que crescia em mim. Aliás, a sala escura e desértica só ampliava o sentimento de que eu estava deixando o mundo normal, o mundo do "real", para entrar em outro mundo, com outras regras.

Foi desamparo à primeira vista, amor à primeira bizarrice: logo, Lynch entraria no meu top 5 de diretores favoritos.

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O brilhante escritor-jornalista David Foster Wallace conseguiu uma rara permissão para visitar o set de Lost Highway e escrever um artigo sobre o cineasta. Aproveitou-se, diz ele, do fato de ser mau jornalista e não saber fazer entrevistas -- na linha Lynch não gosta de jornalistas, mas tudo bem, eu não sou um.

Sobre o episódio, Wallace relatou:

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-- Eu nem sequer finjo ser um jornalista e não faço ideia de como entrevistar alguém, o que, de forma perversa, acabou sendo uma vantagem. Isso porque Lynch enfaticamente não queria ser entrevistado. Quando está filmando, ele está incrivelmente ocupado, absorto e imerso no processo, com pouquíssima atenção ou espaço mental disponível para qualquer coisa além do filme. Isso pode soar como um clichê de relações públicas, mas acontece que é verdade.

Como exemplo, o escritor, que aliás não chegou a entrevistar diretamente Lynch, cita o fato de que era comum, durante os dois dias de filmagem que ele pode assistir, ver Lynch ao longe, de costas, urinando em árvores ao ar livre. A explicação era simples: o diretor bebia doses colossais de café ao longo do dia e frequentemente precisava fazer xixi. Como o trailer sanitário ficava distante do local de filmagem, seria muito custoso parar tudo a cada momento que Lynch sentisse o chamado da natureza. Era mais fácil e produtivo que se aliviasse em qualquer cantinho -- coisa que a equipe de produção encarava com displicência benevolente, e não como algo repugnante, "como se Lynch fosse uma criança pequena, aflita para ir ao banheiro".

Para David Foster Wallace, Lynch já era, nos anos 1990, "o principal diretor avant-garde comercialmente viável dos Estados Unidos".

Apesar de fazer filmes tidos como nonsense, ele alcançava sucesso de público -- e prêmios. Por um tempo, diz Wallace, "parecia que Lynch poderia, sozinho, negociar um novo casamento entre arte e comércio no cinema dos EUA, abrindo Hollywood para algumas das excentricidades e do vigor do cinema de arte".

Imagine o peso subjetivo dessa responsabilidade. Ser o artista que abriria a mais comercial e poderosa indústria cinematográfica do mundo à arte.

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Seu primeiro filme, Eraserhead (1977), não fez sucesso logo de cara, mas lentamente foi ganhando status de cult. Foi apenas depois de ser programado para as sessões da meia-noite de diversas salas dos EUA que conseguiu arrecadar uma quantia considerável de bilheteria, ganhar a atenção de novos círculos e entrar para o panteão do melhor cinema surrealista.

Diz a lenda que o grande Stanley Kubrick teria dito a Lynch que Eraserhead era um de seus filmes favoritos, e que ele fez o elenco de O Iluminado (1980) assistir à película para transmitir a sensação que ele mesmo queria ver impressa no seu clássico do horror.

Com o sucesso, ainda que tardio, de Eraserhead, Lynch recebeu proposta para dirigir o belo e perturbador O Homem Elefante, em 1980, o que lhe rendeu nada menos do que oito indicações ao Óscar (incluindo Melhor Filme, Diretor, Roteiro Adaptado e Ator). Não venceu nenhum, mas já era um feito extraordinário fazer isso em seu segundo filme. A maquiagem do filme foi tão elogiada que no ano seguinte a Academia criaria a categoria de Melhor Maquiagem, até então inexistente.

Foi em meio a essa ascensão que surgiria o convite para fazer Duna (1984), com muito dinheiro e um contrato garantido para o desenvolvimento de projetos futuros na poderosa produtora de Dino De Laurentiis.

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No entanto, Lynch não teria o corte final e nem a liberdade criativa a que estava acostumado. Agora, tratava-se de uma superprodução, e "homens com óculos ray-ban" circulavam pelo estúdio decidindo centenas de cortes e adições.

Duna, apesar de não ficar no vermelho (graças à bilheteria internacional, pois parece que Lynch sempre foi mais amado fora dos EUA do que em sua terra), foi considerado um enorme fiasco para a produtora. Laurentiis ficou furioso.

De certa forma, foi a melhor coisa que poderia acontecer para Lynch.

Preso ao contrato com o cineasta, Laurentiis ofereceu a ele um orçamento pequeno e um salário "ridiculamente baixo" ao diretor, mas, em compensação, cedeu 100% de controle sobre o filme seguinte de Lynch.

Nascia Blue Velvet (1986) -- que David Lynch não apenas escreveu e dirigiu, ele até mesmo participou da trilha sonora, compondo junto com Angelo Badalamenti. Com o sucesso de Veludo Azul, Lynch aprendeu que deveria seguir sua veia de artista.

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-- Aprendi que prefiro não fazer um filme do que não ter 100% de controle sobre ele, declarou.

Duna foi o "fracasso" decisivo de sua carreira, mas também o acontecimento que o desimcumbiu de ser o artista que iria mudar Hollywood e o liberou para ser apenas... David Lynch.

Blue Velvet foi indicado ao Oscar de melhor Diretor e venceu inúmeros outros prêmios, consagrando o que viria se tornar um adjetivo: lynchiano.

 


PS. Leia mais sobre David Lynch -- e sua relação com a psicanálise -- neste link.

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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