arte: loro verz
»Não existe artista bolsonarista. Dias atrás, as manchetes dos jornais estampavam qualquer coisa sobre um evento em uma churrascaria com Bolsonaro e "artistas bolsonaristas". Foi nesse encontro, de tudo impregnado com a estética da miséria - anímica, espiritual, humana - que caracteriza o entorno do presidente, que o Messias esbravejou:"É pra enfiar no rabo de vocês da imprensa essa lata de leite condensado". Ele falava de mais um escândalo, mas o escândalo já pouco importa. Quer dizer, quem ainda precisa de uma pedalada para apoiar o impedimento do presidente, não entendeu nada. Na próxima vida, quem sabe, retorne menos sádico. Voltemos ao evento. A platéia, composta por cupinchas, puxa-sacos, um ministro das relações exteriores abobado e bobos de exteriores avantajados, foi ao delírio. Risos, aplausos. A palavra rabo deve ser muito engraçada, ainda mais quando associada a leite condensado. Acompanho à distância, impacientemente, esses episódios de bolsonarices, golden showers etc. Meio blasé, meio deprê. Mas então as manchetes reportam: "Artistas bolsonaristas..." e eu empaco nessa expressão, que releio e mastigo e rumino e regurgito para tentar entender o seu sentido. Parece-me uma contradição em termos dizer artistas bolsonaristas. Seria como dizer "humanista fascista", "bilionário gentil" ou "romântico misantropo". Pode até ser, o mundo não cansa de surpreender. Mas, no mínimo, soa estranho. Lembro de uma frase do cartunista francês Jean-Marc Ponce sobre o significado da arte: "O papel do artista é mostrar que a vida é mais do que a vida e que a morte é menos do que a morte". O "artista bolsonarista", no entanto, queira ou não, filia-se justamente à ideologia oposta: é alguém que mostra que a vida é menos do que a vida e que a morte é mais do que a morte. A vida é menos do que a vida porque não vale rigorosamente nada - quiçá valha menos do que uma lata de leite condensado no rabo. As vítimas de Covid-19 se avolumam, as vítimas de erro médico, de violência policial, de descaso e abandono, e o Messias dá de ombros. "E daí? Eu não sou coveiro" é um epitáfio digno da sepultura do sinistro presidente. "Morreu. E daí? Não era coveiro." A vida é menos do que a vida. Mas a morte é mais do que a morte. É uma obsessão, um fetiche, uma tara. A morte para a qual apontam os dedos em arminha imaginária, a morte propagada por ditadura militar, a morte por tortura, doença propositadamente negligenciada. Asfixia. A morte, esse imenso culto que fascina, celebrado em uma churrascaria. Quão apropriado! Artistas resistem, provocam, propõem novos debates, pressentem os ventos da mudança, emocionam, transfiguram, afiam consciências. Artistas criam beleza. Os "criativos" bolsonaristas, com seus retratos feitos com projéteis de fuzil, suas pinturas romero-brittanas, suas canções publicitárias com versos infantis e coreografias patéticas, criam feiúra. Existem, de um lado, artistas; de outro, bolsonaristas. Mas não existem artistas bolsonaristas.«
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