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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião | Tudo é por acaso

Dizem que nada acontece por acaso, mas tudo o que acontece é obra do acaso. A vida, milagre incidental, ultrapassa qualquer entendimento. No início não havia nada, até que uma grande explosão espalha bilhões de partículas de puro acaso por todo o universo. E, no meio de tudo isso, eras depois, nós nos encontramos.

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Foto do author  Renato Essenfelder
Atualização:
 Foto: Estadão

arte: loro verz

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A matéria é feita de átomos e de acaso. Nós nunca sabemos que repercussão têm nossos atos. Nunca sabemos quanto de imponderável nos cerca.

Um acidente aéreo pode mudar a história do Brasil; poderia ser uma farpa no dedo, uma unha encravada. Um atraso, um esquecimento, podem mudar a sua história, a história de todo o mundo sensível. Um mal entendido, um atropelamento, uma roupa larga demais, uma roupa curta demais, meias trocadas, fome, frio, ventania, um esbarrão. O bater das asas de uma borboleta em São Paulo provoca tufões no Japão.

Ricardo dormiu quinze minutos extras na manhã daquela quarta-feira. Nunca se atrasava para o trabalho. Desesperou-se. Ainda com a cabeça entorpecida pela noite anterior, correu para o banho, lavou-se, saiu, vestiu-se em menos de cinco minutos e partiu, atrapalhado.

Foi o suficiente para encontrar Ana no elevador. Ao contrário dele, ela sempre se atrasava para as aulas e estava acostumada a sair de casa às 7h30, em vez de às 7h, todos os dias. Tinha um exemplar de John Green sob o braço, e ele achou graça. Nunca haviam se cruzado.

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Naquele dia por acaso Ricardo estava sem sapatos, com meias diferentes, e ela achou ainda mais graça. Ele pediu que segurasse a porta por 30 segundos. Ana, sem medir o tempo, e ele, escravo da pontualidade, viram-se pela primeira vez. Conversaram por acaso. Não pararam mais.

O resto é história: uma história de certezas e acasos. Quem sabe tiveram filhos quem sabe tragicamente Ricardo nunca mais a tirou da cabeça quem sabe nada houve de mais, depois daquele encontro de acasos?

Os acasos se encontram, medem, confrontam. Meu acaso gosta do teu acaso quando olha para baixo envergonhada de existir demais, com seu peito de passarinho em batimento acelerado. Meu acaso gosta de encontrar o teu acaso no elevador. De vê-la com um novo livro sob os braços. De esbarrar em você e derrubar mil papéis pela calçada.

Teu acaso me vê tomar café e rabiscar versos livres. Gosta quando por acaso vislumbra a minha caligrafia. Se por acaso me faltam palavras você acha graça, mas por acaso às vezes falo demais, e te embaraço. Nossos acasos se estudam como dois curiosos desmontando corações, vaso a vaso, fio a fio, até que o tecido esteja espalmado sobre a mesa. E não entendamos nada (por que batem, ainda?).

Viver ultrapassa qualquer entendimento. Explicar é sobreviver, viver é questionar. A matéria é feita de átomos e de acaso. Mas mesmo os átomos, o que são além de incerteza e acaso? Elétrons dançam sob as lentes dos homens, comportando-se como quiserem, conforme as circunstâncias - conforme o imponderável.

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Não existe nada como arriscar demais, nada como jogar na segurançaTodo campo é minado, embora alguns sejam mais floridos. No início não havia nada, até que uma grande explosão espalha bilhões de partículas de puro acaso por todo o universo.

O mundo, esta tela, a nossa existência, são concessões daquele primeiro acidente fortuito, daquele grande espasmo. Do acaso.

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Meu romance, Febre, você encontra aqui. 

Um conto fantástico: A guerra das torres.

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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