Me lembro bem. Eram as noites de quarta, as minhas favoritas. Claro, não estamos falando aqui em competir com as noites frescas de sexta, as manhãs ensolaradas de sábado ou com as tardes lentas de domingo. Estamos falando de uma competição justa entre os áridos dias da semana.
A lembrança mais forte que tenho é de, com uns 15 anos, ser completamente apaixonada pelas noites de quarta. Na minha memória, toda noite de quarta-feira era noite de verão, não importava o mês. Saía da natação às 19h. Colocava a mochila nas costas e andava pelo bairro, que anoitecia devagar. As mesas dos bares nas calçadas, as pessoas começando a sorrir com seus chop na mão.
Chegava em casa e as janelas estavam abertas. Via-se a piscina, convidativa se eu não tivesse acabado de tomar banho. Da cozinha, vinha o cheiro da sopa: de espinafre, de beterraba, de palmito, de abóbora, consoante a semana. Minha mãe perambulava por ali, meu pai chegava. Eles iam para a sala tomar um vinho, um whisky, um cuba libre. Eu me deitava na cama, com a brisa da noite quente entrando pela janela aberta e ligava a televisão para assistir à série adolescente que me parecia a coisa mais legal do mundo todo.
Minha irmã chegava do trabalho. Sentávamos na mesa da cozinha, minha mãe, ao provar a sopa, dizia que não estava quente o bastante. Todos nós dizíamos que estava bem assim. Pães pulavam da torradeira, o requeijão transitava de um lado para o outro da mesa. Meu pai roubava fatias de rabanete da salada com a ponta dos dedos. Depois ajeitávamos a cozinha e nos preparávamos para dormir. Uma programação estonteante de boa.
Mas o tempo passou. Minha irmã arranjou um emprego do qual nunca chegava em horários de convívio. Meu pai teve que ir trabalhar em outra cidade durante a semana. Mudei o horário da natação. E aquelas noites de quarta simplesmente tiveram o despautério de deixar de existir.
Todavia, começaram a surgir as tardes de terça, nas quais eu dava aulas particulares de francês para um amigo. Eu adorava aquelas tardes. E surgiram também as aulas de zumba na sexta de manhã. E as idas ao shopping com a minha mãe para almoçar às segundas. E assim a cicatriz da quarta à noite começou a se fechar.
Hoje, são os fins de tardes de quinta. Fecho o computador e devolvo os livros no balcão da biblioteca, vou para o ponto de ônibus. Subo, desço. Caminho até a escola da miúda. Espero-a num banco de madeira. Ela aparece e sorri de canto. Eu sorrio de canto a canto. Ela sai correndo e me pede para correr atrás. Vem ver a cambalhota, vem ver até onde eu consigo subir, vem ver como eu vou tão alto no balanço. Aproveito com calma o espetáculo, que deixa o Cirque du Soleil no chinelo.
Pegamos mochila, lancheira, casaco, sacola. Andamos uma quadra e entramos na padaria. Suco de melancia no verão. Leite com chocolate no inverno. Pão com chouriço, torrada, fatia de bolo mármore, varia. Nos sentamos e conversamos sobre a vida: lição de casa, tese de doutorado, confusões na escola, confusões no trabalho, cadarço desamarrado, salto gasto.
Chegamos em casa, ele está lá. Beijos distribuídos. O jantar já está no forno. O mesmo cheiro de sopa invade a casa, como nas noites de quarta de quase 15 anos atrás. Banhos e pijamas. E assim o dia vai se encerrando, sem espetáculo pirotécnico e com toda a grandiosidade que merece.
Não falta muito para eu perder esses fins de tarde de quinta. Ela já já cresce, muda de escola, volta à pé com as amigas, sei lá eu. As companhias para o suco de melancia serão outras. E tudo bem. Mesmo. Porque eu sei que virá outra coisa: talvez as noites de terça ou as manhãs de sexta. Talvez ela almoce comigo no shopping às segundas. E pronto. A vida é muito boa. É só a gente não ficar eternamente de luto pelas noites de quarta perdidas.
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