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Ser mãe é padecer na internet

Opinião | Keka Reis: As dores e as delícias de escrever para adolescentes

Keka é autora do best-seller 'O dia em que minha vida mudou por causa de um chocolate comprado nas Ilhas Maldivas'

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Foto do author Rita Lisauskas
A escritora Keka Reis  Foto: Estadão

Nascida na faculdade de Rádio e TV e criada na Rádio 89 e na MTV dos anos 90, Keka Reis, 48, começou a escrever para adolescentes ao trabalhar como roteirista de programas de TV e de cinema. E quando sua filha entrou para o 6º ano do ensino fundamental todas aquelas questões complicadas dessa fase da vida (e que apareciam em seus roteiros) começaram a despontar também dentro de casa.  A menina tinha 11 anos e entrava na pré-adolescência. "Eu me sentia meio abandonada e escrevi muito falando disso, falando dessa fase", conta.

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Keka, até então roteirista freelancer, descobriu que um concurso para a revelação de novos autores de ficção para crianças e jovens (o prêmio Barco a Vapor) estava aberto e decidiu se arriscar. "Eu estou super acostumada a participar de tudo quando é concurso e edital porque é um jeito de a gente colocar nossas coisas pessoais, né? E aí me veio a ideia de um livro na cabeça e eu escrevi assim muito rápido e virei autora". Nascia 'O dia em que minha vida mudou por causa de um chocolate comprado nas Ilhas Maldivas', um best-seller pré-adolescente que já virou peça teatro e vai ganhar as telas em formato de série em breve.

Blog: Você escreveu o livro rapidamente e ele também foi publicado e premiado em pouquíssimo tempo, né?

Keka: Exatamente. Esse livro foi um presente. Nesse meio do caminho eu mandei para algumas editoras e em julho de 2016 eu estava viajando com a minha família e a Companhia das Letras responde e fala: 'amei seu original, vamos publicar'. Essa é uma história bem atípica porque normalmente a gente fica batalhando muito pra ser autora. Eu batalho há muitos anos no audiovisual, escrevo há muitos anos e virei autora depois dos 40, já tinha 40 e tralalá e estava escrevendo pra pré-adolescente.

Eu ganhei um edital para transformar em série e aí ele foi finalista do Jabuti, foi tudo muito assim. Eu ganhei o edital e estava começando a escrever para teatro também, ganhei um edital com uma amiga para a gente produzir a peça, produzimos e foi uma sensação maravilhosa, a gente fez seis temporadas aqui em São Paulo, ganhamos um monte de prêmios, Estadão, Folha, ela ganhou melhor direção, foi um negócio. O livro foi lançado em 2017, a gente estreou a peça de teatro em 2018, e também em 2018 eu lancei a continuação dele, que é 'O dia em que a minha vida mudou por causa de um pneu furado em Santa Rita do Passa Quatro'.

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Blog: E na época que isso aconteceu sua filha já era adolescente.

Keka: Ela nem gosta que eu fale isso, mas na verdade tem a ver com ela. Tem gente que fala, 'ai, o livro foi inspirado na sua filha, alguma coisa assim?' Não exatamente, a personagem nem é parecida com ela, mas tem a ver com a fase que ela estava vivendo. Esse livro fala muito da pré-adolescência, da passagem da infância para adolescência e eu senti, como mãe, que me faltava muitos recursos pra ter uma filha criança e de repente ter uma filha que está naquele meio do caminho...

Blog: Estou vivendo exatamente esse momento. É dureza.

Keka: É, é isso. Exato. Eu me sentia meio abandonada, escrevi muito falando disso, falando dessa fase. Minha filha tinha acabado de entrar no 6º ano e eu percebi esse 'gap' ali, esse meio do caminho que ora é criança, ora é adolescente. Não foi intencional, foi intuitivo, era o que eu estava vivendo assim aqui em casa. E eu acho que parte do sucesso desse livro tem a ver com isso, a gente fala muito pouco dessa fase. (Os adolescentes) gostam muito de história de detetive, Harry Potter, Percy Jackson, mas eu acho que faltam livros que falem especificamente das coisas que eles estão vivendo, porque é um turbilhão você passar por essa jornada hormonal.

Tem criança que quer continuar sendo muito criança, que é aferrada àquele corpo infantil e às brincadeiras, e tudo bem. Tem criança que já flerta com a adolescência e se joga, outras que ficam oscilando, que é o mais normal, tem pré-adolescente que um dia é criança, outro dia adolescente, às vezes é várias coisas no mesmo dia. Isso para um escritor é um fermento muito bom. Esse livro é sobre um dia na vida de uma menina que acabou de entrar no 6º ano, é um dia só e acontece tanta coisa porque tudo se passa na cabeça dela, é esse vai e vem de sensações, de quero ser criança, não quero mais, é uma loucura. Então eu acho que esse livro vai tão bem até hoje acho que por conta disso.

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O primeiro livro de Keka Reis lançado pela Seguinte, selo da Companhia das Letras  Foto: Estadão

Blog: E você recebe mais retorno sobre o livro dos pais ou dos adolescentes?

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Keka: Eu recebo dos dois, de pais de adolescentes e também de professores. O livro foi ao PNLD (Programa Nacional do Livro Didático) então espalhou pelo país inteiro, muitas escolas já tinham adotado. E foi muito maravilhoso porque eu converso com professores da Bahia, do Pará, é muito legal, os professores também gostam muito. Mas dos pais tem uma coisa que eu acho muito legal, modéstia à parte, porque trabalhando para esse pessoal no audiovisual eu sempre ouvia dizer 'ah, não vamos colocar os pais nas histórias porque nessa fase eles já começam a achar os pais meio chatos.' E aí eu falei, cara, mas o pai está sofrendo, eu sou mãe, eu estava sofrendo. Dá para a gente colocar essa 'sofrência' dos pais com muita delicadeza. No livro tem muito a presença da mãe e de um jeito legal, não no clichê 'virei adolescente e vou bater porta', mas de um jeito legal e humano. Tem uma cena que a mãe vai comprar roupa com a filh, e tem esses clássicos dessa idade, onde você compra roupa se a pessoa cresce demais, loja infantil? Festa, como é que você dá uma festinha pra alguém de 11 anos? Então tem a mãe completamente perdida também no livro, a mãe chora... E eu acho muito legal mostrar porque a real é que a relação não é só a criança que está virando pré-adolescente. A relação se transforma muito e a gente vai aprendendo.

Blog: Então você colocou essa sua vivência assim de mãe no livro. O que você acha que comunicou com os adolescentes? Eles conseguiram se identificar nessa filha que você estava enxergando, mesmo ela não sendo ali a personagem?

Keka: Acho que sim, e acho que tem muitas coisas. Primeiro por falar desse vai e vem de ser criança e de ser adolescente, falar desse limbo, dar nome a isso do tipo 'está tudo bem, está todo mundo passando por isso, é assim mesmo'. Um dia você acorda, olha no espelho, está com o cabelo meio diferente, pode parecer algo meio bobo para os seus pais ou para os adultos, mas para você aquilo é a coisa mais importante do mundo, sua franja acordou torta e você começa a chorar na frente do espelho. Eu acho que eles se identificaram com isso, com uma certa intensidade hormonal que a gente tem que ter para falar com esse público. Eu acho que tem uma coisa de linguagem, eu penso muito rápido e por trabalhar muito como roteirista os meus livros têm uma linguagem muito fluida e muito veloz, então é muito a língua deles mesmo. Obviamente eu tenho que prestar muita atenção nessa galera, nessa coisa intensa, com a velocidade da literatura também e com os temas.

Blog: O "Sozinha" é o seu livro mais recente e você trouxe essa coisa do luto para essa faixa etária. A adolescência já é tão pesada e a gente passou por uma pandemia, foi um período muito difícil. Teve a ver com esse período que a gente viveu ou você escreveu esse livro antes?

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Keka: Não, teve total a ver com a pandemia. O "Sozinha"é um livro para adolescentes mesmo, aqueles de 15, 16 anos. Tem muito adulto lendo porque o livro fala muito da relação entre pais e filhos, especificamente de relação mãe e filha nessa idade. Eu sou apaixonada pela adolescência e eu a defendo pra caramba, eu detesto quando os chamam de 'aborrescentes', eu acho que é uma fase da vida que pode ser muito divertida, que tem muita pulsão de vida ali, é uma fase muito curiosa, até a melancolia faz parte, acho que é maravilhosa. Mas também eu entendo que a adolescência é um luto, luto do corpo infantil, luto de uma relação muito protegida de pais, mães e filhos que não existe mais. Então eu acho que eu estava sentindo a necessidade de falar um pouco sobre isso, desse luto e aí aconteceu de eu escrever no meio da pandemia.

Tem uma com uma coisa que para mim é meio que meta de vida que é falar sobre tudo, a gente precisa falar sobre tudo sempre. Com as crianças, com os adolescentes, porque o que não se fala o corpo fala depois. O que aconteceu com a gente na pandemia é impensável, 700 mil mortos, esse pessoal ficou trancado por dois anos, fazendo aula online, eles foram privados de tanta coisa nesse momento que era de ganhar o mundo, muita gente perdeu pessoas próximas, amigos, mesmo quem não perdeu tinha esse luto no ar, uma névoa sobre o nosso país, um negócio horroroso com esse governo e a gente precisa digerir. Falar sobre é digerir. E aí as artes estão aí para isso também, para dar vazão a essas coisas assim. Então não foi intencional, eu sou muito intuitiva sempre, eu não escolho meus temas assim, 'ah, eu vou falar sobre isso'. Tem autor que faz assim, eu acho muito bacana, mas eu sou mais caótica e as coisas vão vindo assim.

Blog: E quais foram e são suas influências? Eu lembro de alguns autores que eu lia nessa fase da vida e que tiveram um impacto gigantesco na pessoa que eu sou hoje. Então eu queria saber quais foram os autores que você lia na sua adolescência, se você acha que eles são legais ainda. Como era a Keka-leitora-adolescente?

Blog: Quando eu era criança e pré-adolescente eu lia muito o que as crianças liam naquela época, Stella-Carr, que era uma autora maravilhosa, eu lia muito os livros da Coleção Vagalume, eu era apaixonada especificamente pelos Marcos Rey, adorava o Marcos Rey, "O rapto do garoto dourado", "O mistério do 5 estrelas". A gente tem uma literatura juvenil muito potente, temos o Pedro Bandeira, que é maravilhoso. Eu tenho uma mãe jornalista que tinha uma estante com muitas coisas interessantes, então eu li coisas muito cedo, coisas que teoricamente você não dá pra um adolescente ler hoje. Eu lembro de dois livros que me impactaram muitíssimo na adolescência: Olga, do Fernando Moraes, que é maravilhoso - recentemente eu li a biografia que ele escreveu do Lula eu falei, nossa, esse cara só melhorou com o tempo, e "Feliz Ano Velho", do Marcelo Rubens Paiva, um livro que marcou muitíssimo a minha adolescência. É muito engraçado porque eu tenho uma filha que prestou UNICAMP e que talvez mude pra Campinas, e aí eu fico lembrando de quando eu lia "Feliz Ano Velho" que é um livro triste, mas quando eu lembro assim da minha pessoa adolescente lendo aquilo eu só ficava pensando, 'meu Deus, quero morar numa república em Barão Geraldo', como ele morava na época. E hoje em dia talvez a minha filha vá morar numa república em Barão Geraldo.

Blog: Ser adolescente hoje é muito diferente de ser adolescente na nossa época ali, anos 80, 90. O digital está muito presente na vida deles, e não dá pra gente colocar os adolescentes em uma bolha e falar que isso não está acontecendo. Você acha que a literatura perde espaço nesse contexto? Você acha que o digital está roubando o tempo de leitura deles?

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 Keka: É fato que rouba, mas eu sou uma otimista, e eu vejo que existe jovens que viram leitores por conta de Tik tokers, esses influencers que falam de livros no Instagram ou no Tik Tok. Ainda que essa geração esteja grudada no digital, a sensação que eu tenho é que eles estão muito mais conscientes do que a geração dos millenials, por exemplo, que cresceram de fato já com as redes sociais, pegaram o boom, e ainda não existia essa crítica 'precisamos sair das telas e precisamos ler mais'. Eu acho que essa geração me parece um pouco mais ligada nos efeitos das telas porque se fala mais sobre isso, 'olha, não pode passar tanto tempo assim no celular'. E eu vejo com otimismo porque eu vejo um movimento nas redes de impulsionar muito a literatura e impulsionar muito os livros. O ano passado a Bienal foi uma coisa, as bienais têm sido lotadas de jovens. Tudo bem que são jovens que estão no Instagram, mas eles estão lendo e leem muito. Minha filha tem 17 anos e lê muito mais que eu, ela sabe dos livros, está espertíssima com o que tá sendo lançado. Então tem esse lado também que é muito interessante. Mas eu acho que a gente não pode deixar nunca de falar, óbvio, sobre a importância da leitura de um livro, não precisa nem ser um livro físico, assim, eu sou apegada obviamente aos livros físicos, mas a importância de você ler fora do celular e tal, e falar desse excessivo tempo de tela também. Eu sempre trato disso nas minhas coisas, nos meus livros. Sempre.

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Opinião por Rita Lisauskas

Jornalista, apresentadora e escritora. Autora do livro 'Mãe sem Manual'

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