Fernanda Santos, 29 anos, técnica em enfermagem, é mãe de Bernardo, 1 ano e 2 meses. Junto com o nascimento do filho começou uma luta que ela nem sabia qual era. Bernardo era choroso demais e tinha brotoejas pelo corpo, cólicas fortes e vômitos intensos - sintomas que eram encarados pelos médicos, familiares e palpiteiros de plantão como "normal da idade". Ela lembra que os três primeiros meses foram horríveis e que tudo ainda ficou pior quando o bebê teve de ser internado depois de uma diarréia com sangue e muco além de vômitos mais intensos do que os que tinha todos os dias. O primeiro diagnóstico: virose. Dias depois, mais uma internação e mais um diagnóstico de virose. Apenas na terceira ida ao hospital uma médica encontrou pistas do que o menino realmente tinha: alergia ao leite de vaca que Fernanda, que amamentava, consumia. O pediatra que acompanhava o menino desde o nascimento, questionado, afirmou que "não existe esse negócio de alergia ao leite de vaca". Fernanda, determinada, cortou os produtos e seus derivados da alimentação. Bernardo melhorou, mas só um pouco. Apenas quando Fernanda também retirou a soja do cardápio e mudou de médico que o diagnóstico fechou: alergia ao leite de vaca, ao de soja e um refluxo grau IV - que é gravíssimo. Com o passar do tempo mais exames foram feitos e outros alimentos que faziam mal ao bebê foram descobertos na fase das papinhas: ovo, banana, manga, carne de vaca e corante vermelho também eram intolerados pelo bebê.
A situação ficou mais grave quando descobriu-se que Bernardo também não podia ter contato com resíduos de derivados de leite: o pai deu-lhe um beijo depois de comer um salgadinho de queijo e placas vermelhas surgiram imediatamente no rosto do bebê. "Bernardo tem o que chamamos de reação imediata", explica a gastropediatra Maria de Fátima Servidoni, que cuida do menino. "Ele entra em contato com o alérgeno e em menos de duas horas os sintomas aparecem", explica. Tempos depois Bernardo teve de ser levado ao pronto-socorro com tosse e dificuldade para respirar por simplesmente inalar o perfume de um creme de cabelo da tia que continha caseína - a proteína do leite - o que só foi descoberto depois de muita investigação e leituras de rótulos.
Rótulos de produtos industrializados mal escritos ou sem informação são um pesadelo na vida de mães de crianças super alérgicas. Maria Cecília Cury Chaddad, 34 anos, advogada e mãe de Rafael, 3 anos, sente uma imensa dificuldade em escolher produtos seguros para o filho, que tem alergia à proteína do leite e da soja: "Algumas indústrias rotulam muito bem, descrevendo todos os ingredientes dos produtos porque têm responsabilidade social ou porque exportam e lá fora essas informações são importantes", constata. "Já outras simplesmente não dão satisfação para seus consumidores", conclui. Além do leite e da soja, muitas crianças (e adultos) têm alergia a ovo, peixe, crustáceos, amendoim e oleaginosas. E o alérgico alimentar corre risco de morte dependendo do seu grau de sensibilidade podendo sofrer choque anafilático e fechamento de glote, entre outras reações graves. No Brasil, cerca de 8% das crianças e 3% dos adultos possuem alergia alimentar.
Da união das famílias de crianças super alérgicas nasceu a campanha "Põe no Rótulo" que até o momento em que este post foi escrito já contava com mais de 75 mil curtidas em sua página do Facebook e angariado apoios de peso.Esses pais e mães querem conscientizar e mobilizar a sociedade para exigir que os rótulos de produtos industrializados sejam claros e que ingredientes desconhecidos sejam decifrados. A caseína, por exemplo, passa despercebida em rótulos lidos por leigos. O grupo luta para que a informação seja completa: ao lado da palavra "caseína" teria de aparecer também a palavra "leite". Ao lado de "albumina" também deveria ser acrescentada a informação "proteína do ovo". E assim com todos os alimentos letais para os super alérgicos. O barulho feito pela "Põe no Rótulo" foi grande e uma comissão de pais foi recebida pela Anvisa em Brasília para discutir uma proposta de resolução. Os pais esperam ser chamados novamente para que uma rotulagem responsável e comprometida finalmente seja obrigatória e saia do papel.
Mas a falta de informação não é apenas nos rótulos. Fernanda, mãe do Bernardo, enfrenta uma luta diária com a família, conhecidos e até médicos que encaram o problema do menino como "frescura". "Nossa dificuldade são as pessoas que não acreditam que a alergia dele é séria. Quando o levamos ao hospital muitos profissionais da saúde desdenham do problema mesmo eu tendo um relatório médico. E o que mais eu ouço dos familiares e dos amigos é que "um pouquinho (de todos alimentos que ele tem alergia) não faz mal", conta.
Segundo a gastropediatra de Bernardo, o senso comum acredita que mães e pais de crianças alérgicas são "neuróticos" mas, segundo ela, os cuidados com Bernardo não são exagero: "É comum avós e tios acharem que o problema não é real", afirma. "Eu mesma já tive um paciente que quase morreu porque o pai desdenhou da alergia que o menino tinha à picada de formiga", conta. Fernanda e o marido andam sempre com uma injeção de adrenalina no bolso, por orientação médica, já que Bernardo pode ter um fechamento de glote ou choque anafilático se exposto aos alimentos que tem alergia.
Os motivos para o crescente número de crianças super alérgicas ainda não são claros, segundo a médica. Há apenas uma série de hipóteses: o consumo cada vez mais frequente de alimentos industrializados, o aumento da poluição nas grandes cidades e a genética estão no topo da lista de possíveis responsáveis. Por isso, quando há casos de super alérgicos na família, Maria de Fátima já sugere que a mãe do recém-nascido exclua por precaução alguns alimentos da dieta enquanto amamenta. Contudo há tratamento para os super alérgicos e Bernardo já melhorou muito desde que começou com a medicação. "Há alimentos que ele nunca vai poder consumir, como o leite, mas acredito que um dia poderá entrar em contato com os resíduos do leite. Acredito também que ele poderá comer bolo e que possa até namorar e beijar uma menina que coma chocolate", brinca.
Se você quer encontrar um super especialista em alguma doença procure uma mãe que tem um filho com a enfermidade cuja informação você procura. Claro que não podemos e nem devemos ignorar os profissionais da medicina. Mas são apenas as mães que duvidam dos diagnósticos fáceis, procuram sempre uma segunda opinião e fazem de tudo para oferecer qualidade de vida para as crianças que necessitam de cuidados especiais. Essa matéria foi feita a pedido dessas mães. Além de "arregaçar as mangas" e lutar pela saúde dos filhos, Fernanda e Maria Cecília também querem que o mundo seja um lugar mais tolerante e bem-informado - para a própria segurança deles.
_________________________________________________________________________
Leia mais: Caí no "golpe" do congelamento em banco privado do cordão umbilical do meu filho
Curta campanha "Põe no Rótulo": https://www.facebook.com/poenorotulo
Curta o "Ser mãe é padecer na internet" no Facebook: https://www.facebook.com/padecernainternet
Siga Rita Lisauskas no Twitter: https://twitter.com/RitaLisauskas
No Instagram: http://instagram.com/ritalisauskas
Quer falar com o blog? Escreva para ritalisauskas@gmail.com
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.