Primeira mulher a assumir o ministério do Esporte, Ana Moser, 54 anos, olha para além do esporte de alto rendimento. Ex-jogadora de vôlei com um histórico longo de envolvimento em projetos sociais, a ministra tem como principal missão no comando da pasta diminuir a desigualdade no acesso à prática esportiva no País e implementar uma política de esporte para todos. É principalmente para isso, ela diz, que trabalha à frente do órgão no qual completou 100 dias nesta semana.
“O grande diferencial que nós estamos trazendo com esse governo é a intenção de chegar e fazer o que não foi feito antes. Para chegar lá, tem que buscar diferentes caminhos, fazer coisas diferentes”, diz ao Estadão a ministra do Esporte, pasta que foi recriada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). No governo de Jair Bolsonaro, o órgão havia sido rebaixado para secretaria.
Para a medalhista olímpica nos Jogos de Atlanta-1996, a maioria dos atletas não é engajada politicamente e socialmente porque vivem numa bolha. É por isso, também, que ocorrem episódios discriminatórios no esporte. “É por causa dessa bolha que muitos não se educam como cidadãos. Falta muito de uma formação cidadã e conectada com a realidade”, opina.
Na sede Instituto Esporte e Educação, organização que mantém há mais de 20 anos, Ana Moser falou ao Estadão, entre outros assuntos, sobre a discussão a respeito da regulamentação das apostas esportivas, do desejo de o Brasil ser sede da Copa do Mundo de Futebol Feminino em 2027 e de sua controversa fala relacionada aos esportes eletrônicos, que não considera esporte, mas admite ser um “fenômeno amplo”. Por isso, o governo terá um grupo de trabalho interministerial para discutir o tema.
A senhora assumiu um ministério que havia sido rebaixado ao status de secretaria no governo anterior e agora vai completar 100 dias no cargo. O que destaca do que foi feito nesses primeiros meses à frente da pasta?
A primeira questão é o Bolsa Atleta, o edital que foi lançado, o projeto Lei do Bolsa Atleta para grávidas e gestantes. A questão do decreto da estratégia do futebol feminino. Entregamos cerca de 35 obras atrasadas, liberamos uma série de recursos atrasados. Fizemos uma articulação com todos os setores esportivos e estamos - só que não vai ser nos 100 dias - reorganizando o Conselho Nacional de Esporte.
As coisas estão andando como a senhora esperava?
O ministério começou dia 24 de janeiro, mas para alinhar todo esse entendimento foi uma maratona de conversas com as instituições. A equipe foi conhecendo os setores e o que é o esporte no País, e as instituições ouvindo da gente quais são as nossas intenções, e colocá-los em uma mesma sintonia para fazer esses planejamentos. Isso foi uma etapa de gestão federal pesada e grande. Mas tem muita qualidade e muita vontade de fazer diferente. Acho que esse é o grande diferencial que nós estamos trazendo com esse governo. Primeiro, a intenção de chegar e fazer o que não foi feito antes e que, para chegar lá, tem que buscar diferentes caminhos, fazer coisas diferentes
A verba que o ministério dispõe é suficiente para os projetos esportivos que quer tirar do papel?
Sozinho não. Tem que ter parceiros pesados como Educação e Saúde e parceiros na sociedade civil. Mas é um setor que tem um acúmulo de construção muito grande e boa parte desse acúmulo nunca foi implantado. Então há um potencial de engajamento de toda essa comunidade que, durante os últimos 10, 15 anos, construíram isso e que vê agora uma janela de oportunidade para botar em prática. Esse esporte é para todos, para 95% da população que não está engajada na competição. A parte dele é o alto rendimento. Tem uma parte dessa competição que é amadora, que precisamos engajar, fomentar. Mas é para além do alto rendimento.
O edital do Bolsa Atleta, programa carro-chefe do Ministério criado durante a primeira gestão de Lula, foi lançado neste ano sem reajuste. Haverá aumento?
Vai, mas não deu agora porque precisava relançar. É também uma questão de orçamento. É uma meta nossa buscar esse reajuste.
Como estão as discussões sobre a possibilidade de o Brasil sediar a Copa do Mundo Feminina de 2027?
Super no começo. Maio é o prazo para manifestação da intenção e daí vem o caderno de encargos. Esse processo vai talvez dois ou três meses, esse segundo prazo não está muito claro, mas sei que a escolha é só ano que vem. Esse foi o cronograma que semana passada foi encaminhado pela Fifa. É a coroação de um processo e esse é um processo de fortalecimento do futebol feminino no Brasil. Para que alguém tenha o número de times, o número de campeonatos, de premiação, centros de treinamento e, na verdade, estratégias de treinamentos sejam cuidadas para o futebol feminino. A questão da proteção contra assédio, licença maternidade, a relação de frequentar os estádios para serem mais amigáveis para mulheres e crianças. Tem todas essas estratégias que são uma ação do governo de articulação com CBF, federações, clubes e municípios. Tem toda uma gama de envolvimentos para desenhar metas que nós queremos chegar. Esse é o grande conteúdo que dá base para essa candidatura.
Há três meses a sua fala de que esportes eletrônicos não são esporte reverberou muito na comunidade gamer. Você mantém sua posição?
Nós estamos discutindo isso no âmbito do governo intersetorial porque é um fenômeno amplo. Nós sabemos, isso é uma coisa que não é novidade. Na verdade, foi até bem discutido isso no meio esportivo. O que acontece é que muitas vezes até o meio esportivo pouco fala a respeito, não se posiciona tanto a respeito. Existe uma pressão até grande do próprio business, do próprio negócio em cima e acaba sendo preponderante porque tem uma presença grande em várias redes sociais e acaba tendo um público grande, fazendo um barulho grande frente ao posicionamento do próprio setor esportivo. Às vezes o setor esportivo tem uma visão diferente. O setor game, né? Então isso vira, de repente, uma surpresa, mas essa discussão não é nova, não é recente. E tem questões trabalhistas, tem implicações com o turismo, porque é um entretenimento, é uma indústria. Tem questões tributárias, tem uma série de envolvimentos.
Temos visto ex-jogadores de vôlei que acabaram saindo das suas ligas após declarações consideradas homofóbicas e violentas. Foi o caso do Maurício Souza, que se tornou deputado federal pelo PL, e do Wallace de Souza, depois de sugerir um ‘tiro na cara’ do presidente Lula. Como blindar o esporte da prática discriminatória e do discurso de ódio?
Na verdade, eu acho que quanto mais manifestações esportivas na sociedade, quanto mais nós aumentarmos esses 30% ativos para um número maior da população, vamos diversificar e democratizar o esporte de uma maneira geral. Essa comunidade esportiva de onde sai Wallaces, Maurícios precisa de uma educação cidadã melhor. É desenhado dessa maneira. É como o meu caso. Eu vim para São Paulo com 16 para 17 anos, estava no terceiro ano do ensino médio e, de repente, parei de estudar e fui treinar de manhã e à tarde. Demorei um tempo para aprender a pagar a conta de luz da minha casa, ou fazer uma reserva de avião, de hotel, ou investir meu dinheiro porque sempre tinha alguém costurando. A vida do atleta sempre é uma bolha. É comer, dormir, treinar e jogar. Tudo gira em torno de rendimento.
É por causa dessa bolha que a maioria dos atletas não se posiciona e não se engaja politicamente?
É por causa dessa bolha que muitos não se educam como cidadãos. Falta muito de uma formação cidadã e conectada com a realidade. Isso é um desenho que é assim em diferentes modalidades, diferentes formatos. O vôlei é muito assim porque compete o ano inteiro. Ou está no clube ou está na seleção. As outras modalidades são mais soltas.
Nunca esteve tão perto de as apostas esportivas serem regulamentadas. Como a senhora enxerga o impacto dessas apostas esportivas hoje no País e qual sua posição nesse debate?
Tem a questão da integridade esportiva e realmente é onde está tratando essa MP, da tributação. São sites hospedados fora do País, não tem saque, não tem nada de proteção ao próprio consumidor, e não tem tributação. Então, tem essa questão de tributação e tem a questão da integridade porque a maior parte, não 100%, mas majoritariamente competições esportivas e muito futebol. A grande questão é a integridade, não induzir ou comprar resultados. Tem toda uma questão de direcionamento, de resultados, que é um fenômeno que acontece no mundo inteiro, também acontece no País e que também tem uma necessidade de controle até para manter, salvaguardar a integridade da competição esportiva.
Você concorda com a exigência dos clubes de participar desse debate? Os maiores clubes do Rio e São Paulo disseram que não foram consultados sobre o tema.
Esse é um debate da sociedade. Na verdade, essa Medida Provisória do Congresso ainda vai ser super debatida no Congresso. O que está sendo feito é a proposta do governo, o desenho da MP. Mas eles vão ter como participar. Na verdade, no Congresso, tem uma grande representação. Eles não vão ficar de fora desse debate porque vai ter um lugar para acontecer.
Recentemente a comissão de atletas pediu isenção fiscal para alguns materiais esportivos. Como está essa conversa? São materiais esportivos de alto rendimento?
Sim, isso já existiu. Nós começamos essa conversa. Tinha a questão da tributação dos materiais esportivos. São exclusivamente fabricados fora do País. Tem duas questões: uma sobre a tributação dos materiais esportivos do País que tem um enquadramento de material de luxo, mas essas questões para o alto rendimento que são equipamentos de determinadas modalidades. Não sei quantas são, sei que tem um de tiro com arco, mas não é só. Tem paralímpico que não é fabricado no Brasil. Durante o período da Olimpíada e antes da Olimpíada, foi o último período em que a gente teve essa eleição. Só que ela tinha prazo de validade. E daí acabou. Nós estamos buscando porque não depende da gente, mas da Receita Federal. Nós estamos articulando com a Receita para buscar isso. Agora, todas as instituições poderiam fazer essa pressão direto com o seu deputado no Congresso. Dá para fazer por várias frentes esse movimento.
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