Na Rua Iguatemi, colada à Faria Lima, o portão de um prédio onde se lê “Tiro Certo” chama a atenção de curiosos que pensam estar diante de um clube de tiro. Quem passa pela entrada e sobe a escada percebe que está dentro de uma academia de golfe. Alguns mantêm o interesse, mas quando descobrem os valores para frequentar o espaço sequer cogitam se aventurar nesse esporte tão pouco praticado no Brasil.
A prática está restrita a clubes exclusivos e majoritariamente a pessoas oriundas de famílias abastadas, formadas por diferente gerações de golfistas. Sócia-proprietária do Tiro Certo, Daniela Arantes não tem nenhum ascendente envolvido com o golfe em sua árvore genealógica, mas foi levada para dentro do esporte pelo marido Felipe Gama, filho de Manuel Gama, ex-presidente da Federação Paulista de Golfe. Fruto do relacionamento entre Felipe e Dani, o pequeno Gabriel, de 10 anos, pertence à quinta geração de golfistas da família paterna.
Daniela não é apenas dona da academia. É professora de educação física e preparadora física da Confederação Brasileira de Golfe (CBGolfe) desde 2018, assim como sua irmã gêmea e sócia Gabriela. Aos 41 anos, elas são referência na preparação de golfistas no Brasil, tanto profissionais quanto amadores, incluindo artistas globais e nomes do mercado financeiro e empresarial. No mesmo espaço, treinam Rafael Becker, que disputa circuitos internacionais profissionalmente, o banqueiro Olavo Setúbal Jr., do Itaú, e os atores Marcos Pasquim e Rodrigo Lombardi.
“Como a gente é preparadora da seleção brasileira, todo o pessoal de alto rendimento treina aqui”, explica Gabi ao Estadão. “Mas tem muito mais amador do que alta performance. Golfe não é cultura no Brasil. O mundo do golfe é muito pequeno. Hoje a gente atende 170 pessoas, o que, para o Brasil, é um número alto. A expectativa é de chegar a 200 ainda neste ano”, completa Dani.
De acordo com as irmãs, é difícil conseguir horários e a academia está sempre lotada até às 20 horas. No dia em que reportagem do Estadão esteve lá, contudo, era véspera de feriado, quando o movimento costuma diminuir. Elas explicam que isso ocorre porque a maioria dos alunos viaja para condomínios no interior que também funcionam como clubes de golfe, caso da Quinta da Baroneza, em Bragança Paulista, e da Fazenda da Grama, em Itupeva.
A academia começou como um espaço de 35 metros, em 2018, ano em que as irmãs viajaram aos Estados Unidos em busca de especialização e voltaram decididas a abrir o negócio, embora inseguras de que teriam clientela suficiente. Esportivamente, o sucesso foi imediato, já que logo nos primeiros meses a estrutura chamou a atenção da CBGolfe e o então presidente Antônio Carlos Padula convidou as gêmeas para trabalharem com a seleção.
O interesse dos amadores também se desenvolveu rápido e o negócio cresceu até a mudança para o atual endereço, de 1.200 metros quadrados. O espaço tem equipamentos de exercícios específicos para as necessidades do golfe, uma área externa para a prática das tacadas e um avançado simulador, que, segundo as irmãs, só é encontrado no Brasil nas mansões de alguns praticantes. Há também uma área para happy hour e opções de vinhos para os alunos. Às sextas, o local é alugado para confraternizações.
A academia dispõe de 15 preparadores físicos e quatro professores da parte técnica do esporte. Os planos para receber acompanhamento das gêmeas são mais caros que com os demais profissionais. Treinar com elas uma vez por semana durante um ano inteiro custa R$ 12 mil, já que o valor é de R$ 1 mil por mês. O plano anual mais caro, que oferece quatro treinos por semana com as irmãs, é de R$ 3.800 ao mês, o que dá R$ 45.600 no total.
Para ser orientado por outros profissionais, os valores vão de R$690 a R$ 2.500 mensais. Nenhum desses esquemas dá direito a aulas no simulador, que tem seus próprios planos: R$ 1.400 por mês (anual), R$ 1.650 por mês (semestral) e R$ 1.800 por mês (trimestral).
A valorização do próprio trabalho é algo que orgulha as gêmeas Arantes frente ao ambiente pouco propício para mulheres do mundo do golfe. “É muito machista. Na semana que vem, eu tenho um torneio amador que vai ser simplesmente quarta, quinta e sexta, porque eles partem do pressuposto que a mulher não trabalha. Os masculinos são sexta, sábado e domingo”, conta Dani.
O número de mulheres que praticam é bem menor que o de homens. Na Tiro Certo, as irmãs estimam ter pouco menos de 50 alunas, e, segundo Gabi, muitas delas estão ali acompanhando os maridos. “Está aumentando, mas muito por elas quererem agradar o marido. Não é aquilo de querer muito jogar”, afirma. “A maioria é acompanhante de marido. São poucas as solteiras, ou que o marido não joga. É muito raro”, acrescenta Dani.
Esporte em todos os dias da vida
As duas se entendem como respeitadas pelos homens do meio, especialmente por suas habilidades, e dizem estar acostumadas a lidar com machismo, já que tentaram a carreira profissional de jogadoras de futebol. “Ser duas mulheres que tocam isso em um universo tão machista dá muita credibilidade e valor. A gente conquistou isso. Os homens imploram pra jogar com a gente no nosso clube. A gente cresceu num mundo machista, o do futebol.”
Ambas treinaram no Palmeiras quando eram adolescentes, mas se sentiram deslocadas e não deram continuidade na carreira. “Era uma realidade muito diferente da nossa. Foi 25 anos atrás, só a gente estudava em colégio particular. As outras estavam lutando”, conta Gabi.
Apesar de verem que o futebol profissional não era para elas, continuaram praticando esportes, especialmente após duas motivações bastante dramáticas. A mais emblemática é a morte do pai, vítima de um tumor, quando as irmãs tinham 19 anos. “Ele ligou em casa e pediu para a gente ir ao hospital. Ele já estava com tumor na cabeça. No dia anterior, a gente visitou e ele não falou nada com nada. Quando a gente chegou, ele não lembrava que tinha ligado, mas falou: ‘Eu quero que vocês façam esporte todo os dias da vida de vocês. Isso faz a diferença’”.
Foi a última frase do pai, e as gêmeas levaram muito a sério, a ponto de não ficar um dia sem fazer exercícios por muito tempo, até perceberem que não o decepcionariam se passassem um domingo no sofá. O esporte também é importante para elas manterem a qualidade de vida sendo diabéticas. Gabriela foi diagnostica quando ainda estava na faculdade e, dez anos depois, foi a vez de Daniela.
“Para mim foi um grande tabu, você tem que se cuidar, se não vai perder a perna, ficar cega ,tem que fazer hemodiálise. Foi horrível. Quando a Dani ficou, a gente tirou de letra”, lembra Gabi. “E quando você fala pra alguém que é diabética, já falam: ‘minha vizinha amputou a perna’. Meu, ninguém perguntou da sua vizinha”, brinca Dani.
Casa dos golfistas profissionais brasileiros
O golfe chegou devagar no hall de esportes praticados pelas irmãs. Dani achava esquisito o marido jogar. Depois que ganhou o título de um clube de golfe do sogro, decidiu se aventurar, começou a fazer aulas e gostou. Em pouco tempo, levou a irmã junto e, a partir dali, aproveitaram a formação como educadoras físicas para se especializarem na área.
Frequentando clubes e o universo dos golfistas, conheceram muita gente do meio, como Rafael Becker, que utiliza as dependências da Faria Lima para treinar quando está no Brasil, assim como os demais profissionais brasileiros. Quinta geração de uma tradicional família de golfistas, Becker tem 33 anos e está disputando a PGA Tour Américas, circuito realizado no Canadá e na América Latina. A competição, que tem 18 etapas, vale classificação para o Korn Ferry Toyr (KFT), por meio do qual se dá a qualificação para o PGA Tour, o circuito mais importante do golfe mundial.
“Eu treinava na academia onde o cara treinava o Jordan Spieth, o Scott Scheffler, o Will Zalatoris (astros americano do golfe), e aqui é melhor. É uma das razões para eu voltar para cá, estou muito bem assessorado. Não só pelo espaço, mas pela meninas. A gente é do mesmo clube, o São Fernando, era amizade e virou profissional. Também sou do grupo da CBGolfe, mas já trabalhava com elas antes disso”, diz Becker.
A rotina de um atleta de golfe é tão puxada quanto a de atletas de outros esportes. Durante os períodos em que está no Brasil, Rafael Becker acorda cedo e medita antes de ir para o clube onde treina. O dia é finalizado com o treino físico cheio das especificidades do golfe. São trabalhados movimentos como mobilidade de quadril e rotação torácica, além de equilíbrio e força.
“Para mim, é como se eu tivesse um momento pré-temporada. Eu foco muito mais na parte física. Eu sei que o meu treino não vai ser tão bom, mas eu sei que daqui a quatro semanas, quando chegar no Canadá, qualquer coisa que eu falar para o meu corpo ele vai conseguir fazer e ele vai responder”, explica.
Outros profissionais recebem o acompanhamento das irmãs, até mesmo a distância. É o caso de nomes como Fred Biondi, que encerrou sua passagem pelo golfe universitário no ano passado como segundo colocado do ranking. Atualmente, aos 23 anos, ele é o melhor golfista brasileiro, com a maior chance de ir aos Jogos Olímpicos de Paris-2024, e disputa o circuito Korn Ferry. As gêmeas Arantes também já treinaram Bella Simões, promessa nacional de apenas 10 anos.
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