A paralisação da NBA e de outras ligas nos EUA por alguns dias em apoio aos protestos contra o racismo e a brutalidade da polícia, que baleou Jacob Blake, um homem negro, com sete disparos, em Kenosha, Wisconsin, reacendeu a discussão sobre a importância do posicionamento dos jogadores brasileiros diante da discriminação racial.
No Brasil, apesar da proliferação de casos de violência contra negros (pretos e pardos são 75% dos mortos pela polícia, segundo relatório da Rede de Observatórios da Segurança), o cenário é diferente, e são poucos os atletas que se manifestam contra a discriminação racial.
Segundo especialistas ouvidos pelo Estadão, os atletas não são os únicos responsáveis pela omissão diante da pauta antirracista. A questão é complexa e o problema é estrutural, de modo que há fatores que desencorajam o atleta a se posicionar.
“Não depende só deles. É preciso que as entidades, clubes e federações incentivem essas manifestações porque o que estamos vendo nos EUA, além de ser algo coletivo, é também algo apoiado por essas instituições”, diz Marcelo Carvalho, fundador e diretor do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, que mapeia casos de racismo no País e exterior.
O relatório mais recente, ainda não lançado, aponta que houve 65 denúncias no futebol brasileiro em 2019 – 13 a mais do que em 2018. A entidade ainda monitora outros preconceitos como xenofobia e homofobia.
Outro fator que desmotiva o jogador a se posicionar é o medo de represálias, algo que acontece até com famosos, como Colin Kaepernick, astro da NFL. “Aqui no Brasil a gente está voltado para o individual, desejando que os atletas se manifestem e que desse posicionamento saia algo coletivo", diz Carvalho.
Mas a gente esquece que o histórico mostra que quem se posicionou sofreu represálias. Então, isso faz com que muitos, por mais que queiram, não o façam porque têm medo, receio
Marcelo Carvalho, fundador e diretor do Observatório da Discriminação Racial no Futebol
“O sistema não quer que ele fale sobre isso. O sistema e a estrutura são racistas. Se ele se manifestar, vai perder patrocínio, possibilidade de transferência. Vai ser visto como um negro encrenqueiro”, destaca o ex-árbitro Márcio Chagas, um dos poucos negros que apitou partidas de futebol no País.
Ele fala com a experiência de quem já foi vítima de injúria racial. Em 2014, teve bananas atiradas em seu carro após trabalhar no jogo Esportivo e Veranópolis, em Bento Gonçalves. Não teve apoio da Federação Gaúcha e encerrou a carreira mais cedo. “O sistema desenhado no futebol nada mais é do que uma representação contemporânea da escravatura. Paguei o preço quando denunciei.”
A questão, porém, vai além do medo das represálias. Está ligada à cultura brasileira, na qual impera a falta de conhecimento dos atletas, e da sociedade no geral, sobre a história dos negros. Além da educação, o lado financeiro é ainda um empecilho para que haja avanços.
“O pessoal aprende na escola a dar importância para a princesa Isabel, e não valoriza nossos heróis negros, Malcom X, Zumbi dos Palmares etc. Os jogadores não têm conhecimento para lutar contra esse sistema racista”, enfatiza Wilson Santos, ex-jogador que passou por São Paulo e Inter, por exemplo.
Wilson é sobrinho de Wladimir, jogador que mais vezes vestiu a camisa do Corinthians, com 805 jogos, e figura importante na Democracia Corintiana, movimento que lutou contra a ditadura militar. “Venho de uma família em que conversávamos sobre racismo, com meu tio Wlad. Nossa autoestima sempre foi alta. Por mais que a gente escutasse muitas coisas sobre tipo de cabelo, cor da pele, a gente conversava em casa e reforçava que éramos bonitos, nosso cabelo era bom. Não deixávamos nos abalar”, reitera. “O racismo é um crime perfeito no Brasil porque quem denuncia acaba se tornando vilão e quem comete vira vítima. O jogador ou quem se posiciona é vitimista, oportunista, ‘mimizento’. Quem denuncia se sente sozinho e não tem acolhimento algum”, observa Márcio.
O esporte brasileiro carece de um LeBron James, voz ativa no suporte ao movimento negro nos Estados Unidos. Também não conta com astros como a tenista Naomi Osaka e o hexacampeão mundial de Fórmula 1, Lewis Hamilton, que além de ecoar os protestos nas redes sociais, se tornaram ativistas e foram às ruas para endossar a multidão que denuncia os abusos contra os negros.
"Os atletas de nome que têm voz na NBA, como o LeBron James, estão nos Estados Unidos e vivem a realidade lá. Aqui, a maioria dos nosso principais jogadores, da seleção brasileira, não estão aqui, não estão vivendo a realidade brasileira", pontua Carvalho.
Diante da falta de demonstração de força e da ausência de líderes esportistas capazes de capitanear um movimento de luta antirracista, há pessimismo quanto a uma possível mudança de paradigma. "Em virtude dessa questão cultural que se tem no Brasil, onde o negro tem essa dependência financeira que vem da branquitude, dominadora de todos os espaços, não acredito que aqui vamos avançar a ponto de surgir alguma liderança que assuma esse posto no Brasil", avalia Márcio Chagas.
"Sinceramente não vejo que no nosso cenário apareça uma liderança esportiva que compre essa briga, coloque sua cara a tapa, mesmo que esteja numa posição financeira favorável atualmente. O sistema é muito cruel", emenda.
Realidades diferentes
No geral, a construção do atleta americano passa pelas universidades, ao contrário do que ocorre com os jogadores brasileiros, que dificilmente são incentivados a estudar as mazelas sociais e criar uma visão crítica. Existe o agravante de que os atletas são condicionados desde cedo, pelas pessoas ao seu redor, a só focarem no futebol e acabam se fechando dentro de uma espécie de bolha. Esse ambiente impede que eles enxerguem o que acontece no mundo externo e os deixam alheios aos fenômenos sociais, a exemplo do que aconteceu com Wilson na época em que atuava.
"Quando eu jogava, eu sentia na pele, mas eu estava tão concentrado no jogo que eu encarava aquilo como uma forma do adversário me tirar do sério, me deixar nervoso. Então, eu escutava, mas relevava porque pensava que tinha que concentrar só no jogo, na minha equipe. Eu ficava bravo na hora, mas eu não queria me desconcentrar", recorda o ex-zagueiro.
As federações, clubes e outras entidades esportivas também têm papel essencial para que o panorama mude. Fora do Brasil, as instituições, como a NBA, deram respaldo para que a mobilização antirracista ganhasse força.
"O que os clubes e as federações fazem é postar uma frase, aderir uma campanha de uma semana ou 15 dias e só. É preciso haver mais apoio, um comprometimento maior de quem está em cima para incentivar o atleta a crescer culturalmente e ser exemplo para a geração mais nova", aponta Wilson.
Desigualdade social começa a incomodar
Há atletas brasileiros, porém, que já encampam essa luta e se tonam um contraponto à postura da maioria de seus colegas. É o caso de alguns jovens futebolistas, como Paulinho, do Bayer Leverkusen, Gregore, do Bahia, Jean Pyerre, do Grêmio, e Lucas Santos, do Vasco, que têm se engajado nas causas sociais do País, seja pela proximidade com as redes sociais, que lhes dão a possibilidade de interagir e mostrar suas visões de mundo, ou pela influência familiar.
Lucas Santos foi criado na comunidade Para-Pedro, na zona norte do Rio. Lá, desde cedo, notou a desigualdade marcante na vida dos que estavam ao seu redor. Logo, com a ajuda da família, o meia foi pavimentando seu caminho no futebol ao mesmo tempo em que moldava sua consciência de classe e de raça. Com 21 anos apenas, ele impressiona pelo discurso consciente.
“Todos os esportes deveriam fazer um movimento ou tomar uma atitude na questão racial e contra todos os tipos de preconceito. O boicote da NBA vai mexer um pouco com a estrutura racial aqui no Brasil. Porém, acho que o futebol brasileiro não teria rodadas paralisadas, infelizmente”, admite ao Estadão o meia do Vasco. “Falta aos jogadores daqui ter mais ciência da importância da briga contra esse preconceito e os outros também”.
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