Basta uma rápida olhada em Marcelinho Huertas para notar uma enorme diferença. O armador está fisicamente diferente. Mais forte, mais magro. O processo de mudança no corpo começou em 2017 com o início da transição para o veganismo e serviu para o jogador prolongar sua carreira no basquete. Ele renovou recentemente com o Lenovo Tenerife, da Espanha, por mais duas temporadas e tem como principal objetivo estar presente nos Jogos Olímpicos de Paris-2024, quando terá 41 anos.
Em entrevista ao Estadão, em São Paulo, onde se preparou para entrar em quadra pela seleção brasileira nas Eliminatórias da Copa do Mundo, Huertas detalhou sua transformação. "Dificilmente eu estaria aqui, jogando em alto nível, aos 39 anos", afirmou o jogador, que comentou ainda do trabalho do técnico Gustavo De Conti, da próxima geração, da CBB e da rotina como pai de três meninos pequenos.
Como foi essa mudança de alimentação?
Vai fazer cinco anos. Foi uma mudança, em primeiro lugar, por uma questão de saúde e pensando em performance. Li muito sobre o assunto, estudos aprofundados de médicos certificados, vi muitos documentários de diversas fontes. Há muitos atletas de elite em diversas modalidades que triunfaram com esse tipo de alimentação. Serena Williams, Lewis Hamilton e Novak Djokovic, alguns jogadores da NBA, são veganos. Tudo isso me deu segurança. Consegui fazer essa transição na alimentação. Isso rendeu frutos para mim. Esses últimos anos consegui performar em um nível extraordinário. Também tive uma melhoria muito grande em relação ao meu corpo, não sinto mais nada de dor articular, de ligamento, algo que eu tinha no passado. É até estranho. Você pensa que quando é mais novo tem menos problemas e, quando é mais velho, vai tê-los. Aconteceu justamente o contrário comigo. A carne, o leite, todos os lácteos, eles geram uma inflamação dentro do seu corpo e isso claro, quando você tem um esforço grande, acaba botando carga, gera mais inflamação sobre uma inflamação. A sua recuperação muscular não é igual, acaba tendo uma fadiga muscular muito grande. Seu corpo não consegue fazer com que ele se recupere rápido porque você está colocando mais coisas inflamatórias dentro dele. Então foram muitos sinais positivos que fizeram com que eu aderisse e, no curto e médio prazo, realmente foi uma situação que funcionou para mim. Agora é um estilo de vida, já que entraram outras questões, como meio ambiente e crueldade animal, na minha escolha.
Essa transição foi difícil?
É complicado quando você tem uma um certo tipo de costume, de cultura... Eu sempre comi muita carne e queijo. No começo é estranho porque você fica tirando aos poucos, não pode ser um golpe tão duro. Às vezes tem vontade. Sente o cheiro, vai em restaurantes que servem carne. É complicado resistir. Lógico que cada vez eu tenho menos vontade, menos desejo, mas não sou nenhum robô. Se algum dia eu tiver vontade de comer, vou comer. Às vezes eu como peixe por falta de opção em alguma viagem. São viagens longas, em que você vai de um hotel para o outro, às vezes não oferecem uma alimentação adequada para eu ter todos os nutrientes e você escapa. Mas tento fazer isso o mínimo possível. O importante é ter bons hábitos e manter uma regularidade.
Você compartilha sua mudança com os outros atletas?
Nunca tentei introduzir esta alimentação para ninguém. O que acontece é que muita gente se aproxima para perguntar, tem curiosidade. Os atletas que convivi nesses últimos anos testaram esta mudança nos hábitos alimentares. Hoje temos outros atletas veganos na minha equipe (Tenerife), muitos atletas hoje em dia estão fazendo essa transição. Alguns não conseguem, mas reduzem muito o consumo de carne vermelha, comem mais peixe. Existe uma curiosidade muito grande de muitos atletas, que perguntarem como é? O que eu como? O que dá para substituir? É difícil fazer essa transição, muita gente não consegue abrir mão dos costumes, das tradições, de uma vida inteira. Mas isso tem de partir muito da pessoa. Acho que seria até uma coisa ruim da minha parte se eu quisesse forçar alguém a fazer alguma coisa aqui que não querem.
É possível mensurar quantos anos você ganhou de carreira por se tornar vegano?
Não sei quantos anos, mas acho que dificilmente eu estaria aqui, jogando em alto nível, aos 39 anos, se eu não tivesse feito essa mudança. Lógico que eu não tive lesões importantes, espero que não tenha agora na nessa reta final da minha carreira, o que é importante, mas é difícil dizer. Tenho mais dois anos de contrato. Penso em continuar na seleção até o final desse ciclo olímpico que vai até 2024. Acho que só o tempo vai dizer até onde eu posso chegar, mas acho que dificilmente eu teria essa oportunidade de estar jogando e ter ainda alguns anos pela frente, se eu não tivesse feito essa mudança.
Então, os Jogos de Olímpicos de Paris seriam como uma despedida? Aos 41 anos, você seria o mais experiente da seleção, talvez ocupar o papel que Luis Scola teve para a Argentina em Tóquio no ano passado.
Espero que eu consiga ser o Scola do Brasil e possa ajudar essa molecada, essa geração mais jovem com alguns jogadores que já tem uma certa bagagem, uma experiência. Espero que possamos chegar lá (em Paris) com chances de competir no mesmo nível que estamos nesta última década em competições internacionais e, quem sabe, possa acabar pelo menos como o Scola, com uma medalha, seja no Mundial ou na Olimpíada. Vamos continuar lutando em busca de sonhos. Obviamente que temos de classificar para os Jogos Olímpicos, temos de classificar para o Mundial no ano que vem. Tem muito chão pela frente. Vamos um passo de cada vez.
Depois de muito tempo temos um brasileiro no comando da seleção... Como você vê o trabalho do Gustavinho?
Conheço o Gustavo de longa data, há quase 30 anos. Ele é apenas três anos mais velho do que eu. Tive a felicidade de vê-lo jogar na base do Paulistano quando eu estava lá. Depois ele virou técnico. Desde pequeno, eu ia ao clube, era sócio e todos os anos, mesmo morando fora, quando eu vinha de férias, ia treinar no Paulistano e o Gustavo já era o técnico do juvenil, do adulto e tive oportunidade de trabalhar e treinar com eles durante muitos anos. Sei a forma que ele trabalha e, por mais que seja a primeira vez que ele é meu técnico na seleção, isso facilita muito por eu conhecer um pouco a cabeça dele. É super prazeroso poder estar com um cara que eu tenho essa proximidade, esse carinho. Um cara que veio lá de baixo, desde o comecinho treinando categorias mini, mirim, infantil... Foi ganhando seu espaço, chegou na seleção como assistente técnico, saiu com o (Aleksandar) Petrovic e voltou agora como técnico principal. Temos uma história. Mas o mais importante é que quando entra na quadra qualquer relação que possa existir fora, fica fora. Ele tem uma maneira de treinar, ele é um cara linha dura, exigente como tem de ser e é assim com todos. Temos um comprometimento forte com a seleção. Lógico que não vai existir falta de respeito em nenhum momento, mas a amizade acaba ficando de lado porque é a hora do nosso trabalho.
Nenê, Varejão, Alex, Splitter, Marquinhos, Marcelinho Machado, Guilherme Giovannoni se aposentaram... Você é último da sua geração na seleção... Você gosta do papel de líder?
Eles entraram uns anos antes que eu na seleção então ainda tenho esses anos de lambuja (risos). Mas não é uma questão de gostar, acho que é uma coisa natural. Nunca quis ser protagonista. No basquete, como em qualquer outro esporte, você tem de fazer o que é bom. Você tem de saber suas virtudes e defeitos. Tem de fazer com que os seus defeitos sejam menos vistos e tirar o maior proveito do que você pode das suas virtudes. É uma consequência dessa longevidade. Em relação ao legado, não me preocupo. O que vou deixar é o que fiz pela seleção em quadra, o meu espírito de equipe, de liderança, um cara que sempre colocou a seleção em primeiro lugar, nunca disse não desde que entrei em 2004. São os pequenos detalhes, que talvez sejam muitas vezes invisível ao olho das pessoas, que são importantes. Você ser um bom exemplo dentro da quadra, não somente com conselhos. Agora legado é uma coisa que os outros vão se dar conta do que você fez pela seleção. Não quero forçar nada. O mais importante é você fazer o seu trabalho bem.
Você comentou da chance de encerrar sua carreira na seleção com uma medalha. O Brasil tem condições de brigar de igual para igual com as principais seleções?
Temos de ser otimistas e realistas. Acredito que temos uma boa base para competir. Às vezes, o basquete é um pouco ingrato de certa forma, porque você faz uma competição incrível numa fase de grupos e depois acaba jogando tudo ou nada a partir das oitavas de final. Às vezes uma preparação tática importante pode acabar rendendo frutos para você conseguir uma vitória contra um time maior ou vice-versa. Depende muito da nossa preparação mental, saber que esses jogos de mata-mata tem um valor muito grande. Esses jogadores mais jovens não têm essa vivência, não disputaram Mundiais, Olimpíadas, não fizeram jogos contra grandes equipes. São poucos jogadores nessa geração que tiveram oportunidade. Eu, o Rafa Luz, o (Vitor) Benite, Augusto Lima, Hettsheimeir... Yago e (Bruno) Caboclo são outros que já tiveram uma certa participação. Agora, cada vez mais, serão protagonistas e eles têm de demonstrar seu valor no cenário internacional quando enfrentarmos times europeus, Austrália, Estados Unidos, enfim, contra seleções de primeiro escalão. Sabemos que nessas janelas (das Eliminatórias da América) enfrentamos equipes mais frágeis. É importante para ganhar experiência, mas vamos crescer mesmo nesses jogos importantes. Eles precisam se desenvolver, ter fome de bola para conseguir manter o Brasil no topo e conseguir, quem sabe, o que minha geração não conseguiu. Eles podem e vão ser o futuro da seleção brasileira.
Como vê o momento da CBB, que ainda enfrenta muitas dificuldades?
É difícil comentar de fora por mais que eu esteja mais ou menos dentro, mesmo que eu me preocupe. O que o Guy (Peixoto, presidente) e o Marcelo (Pará, diretor) têm feito pela seleção é de tirar o chapéu. Eles fizeram absolutamente de tudo para recuperar o respeito que merecemos. Sabemos que é uma situação muito complicada, que conseguir patrocínio está cada vez mais difícil, mas eles deram realmente uma reformulada boa e agora somos vistos de maneira diferente. Espero que possamos continuar fazendo esse trabalho para recuperar um pouco do prestígio, porque o nosso basquete é muito respeitado internacionalmente. Infelizmente ainda temos um pouco o pé atrás com o esporte no Brasil. Espero que isso possa mudar.
Agora, falando do Tenerife, o que espera da próxima temporada?
Vamos ter outra vez um time muito competitivo para jogar outra Champions League e brigar para conseguir o segundo título do Mundial (o primeiro foi em 2020). Desta vez com mais equipes, não sei, mas vai ser legal enfrentar um time brasileiro, como o São Paulo. Chegar na final com eles, seria muito bacana uma equipe brasileira contra um jogador brasileiro por um título importante. Mas tem muito chão até lá. O Mundial é apenas em fevereiro. Vou focar na seleção e no clube para chegar lá em boas condições.
E, fora de quadra, como tem feito para cuidar dos três filhos pequenos?
Tento ser o mais presente que eu posso em todos os momentos com os meus filhos, ajudar nas tarefas de casa, brincar com eles, educar, ensinar os valores que eu aprendi e acredito. É muito importante esta fase. Eles são como esponjas, aprendem muito simplesmente com os gestos dos pais. Quero ser um bom exemplo para eles, ser carinhoso, aproveitar ao máximo essa fase com eles pequenos porque passa muito rápido e fico muito tempo fora de casa.
E já comprou uma tabela de basquete para eles?
Já sim (risos). Os mais velhos, que são gêmeos e estão com três anos, já jogam. O outro está com um ano e meio, são três meninos. Seria um prazer vê-los seguindo os meus passos, o da família, que sempre foi ligada ao basquete. Espero que eles possam ter essa mesma paixão, o mesmo amor pelo basquete. O esporte vou querer que faça porque ensina muito, é uma escola de infinitos valores. Agora, se não for o basquete, vão trilhar o caminho deles, cada um tem sua história.
Já imaginou o que pretende fazer no pós-carreira?
Penso muito, mas não tenho nada decidido. Quando a hora chegar, eu vou poder sentar, conversar com a minha família, ver quais são as melhores opções. Tenho uma história bonita dentro do basquete e bons relacionamentos, que é outra coisa muito importante que tive ao longo da minha carreira e preservo. Quando for o momento, vou ponderar um pouco tudo e ver qual que vai ser o meu futuro, mas realmente ainda não sei se vou morar no Brasil, na Europa, nos Estados Unidos... Só o tempo dirá.
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