A morte de Juan Izquierdo, de 27 anos, do Nacional do Uruguai, impactou diretamente o futebol na América do Sul. Durante um confronto com o São Paulo, pela partida de volta das oitavas de final da Libertadores no MorumBis, sofreu uma arritmia seguida de parada cardíaca e precisou ser reanimado. Levado ao Hospital Albert Einstein, o jogador morreu cinco dias depois, após manobras de ressuscitação.
Jogadores do São Paulo homenagearam Izquierdo no duelo com o Atlético-MG – derrota por 1 a 0 –, pelas quartas de final da Copa do Brasil. “Claro que atrapalha (o lado psicológico). Não é desculpa porque perdemos, mas atrapalha. Disputamos um jogo em que um companheiro de profissão perdeu a vida. É complicado, o clima fica pesado, todo mundo pensa, não tem como tirar da cabeça”, disparou Rafinha, ainda na zona mista.
Rafinha, Calleri, Michael Araújo, Wellington Rato e Giuliano Galoppo viajaram ao Uruguai para o velório do atleta. Em comunicado oficial, o Campeonato Uruguaio teve duas rodadas do Clausura adiadas e reprogramadas em respeito ao jogador.
“Um momento difícil. Não temos palavras para dizer. Queríamos estar aqui porque vimos tudo que aconteceu no estádio e desejar força para a família. Sei que é duro, mas que tenham força. Fazemos o mínimo, como se fosse um de nós. Viemos para fazer o que gostaríamos que fizessem para nós. É como se fosse da nossa família”, falou Rafinha à emissora televisiva Telemundo, do Uruguai.
No retorno ao Brasil, o São Paulo voltou a ser derrotado para o Fluminense, pelo Campeonato Brasileiro. Os resultados, e as falas dos jogadores, revelam o impacto do luto por Izquierdo nos atletas. Esse estado se mostra um fator no desempenho dos atletas, principalmente no caso recente da Libertadores, mas não é o único: neste mês, Erling Haaland chegou a ficar fora dos treinamentos e ser dúvida em partidas do Manchester após a morte de um parente.
“É um momento difícil para ele e sua família. Nossos pensamentos estão com ele e toda sua família. Veremos amanhã se ele está mentalmente e fisicamente apto para jogar”, afirmou Pep Guardiola.
Cada pessoa sente o luto de uma forma diferente. No geral, para o atleta, os principais impactos, além da tristeza, são a dificuldade em se concentrar, aponta Flávia Magalhães, médica com 20 anos de experiência no esporte e que já trabalhou para clubes, CBF e Conmebol. “O luto desviará o foco do jogador, dificultando a concentração. Além disso, o atleta também pode viver o medo associativo de ser vítima da mesma fatalidade”, diz a profissional, no caso da morte de Izquierdo, durante o exercício de sua profissão. O sentimento de tristeza pode afetar ainda a motivação. Além disso, o estresse emocional pode gerar insônia, fadiga precoce e alterações de apetite, impactando na performance.”
Em 2016, o caso do acidente com o avião da Chapecoense, que seguia para a decisão da Copa Sul-Americana contra o Atlético Nacional, na Colômbia, impactou a dinâmica do futebol brasileiro e dos sobreviventes. Alan Ruschel foi um dos sobreviventes, ao lado dos jogadores Neto e Jakson Follmann. Oito anos depois, e agora no Juventude, o lateral ainda sente os reflexos do acidente em sua vida.
“As pessoas perguntavam: ‘será que ele vai conseguir voltar a jogar? Como ele vai voltar?’. Além de eu provar que eu tinha condições, tinha que lidar com tudo isso. Tem esse olhar das pessoas, de piedade. Não queria que olhassem pra mim com dó, mas como atleta”, aponta Ruschel, ao Estadão. “Eu vivi aquilo e deixei bem claro que queria viver minha vida, ser reconhecido como um atleta, não como um sobrevivente. Desde quando voltei a jogar, procuro honrar as pessoas que se foram da melhor maneira possível. Acho que agora o Brasil está se tocando do que aconteceu e do que estou fazendo.”
No caso da Chapecoense, entra uma outra fase do luto: Ruschel afirmou que não gosta de pensar e relembrar o acidente. Além de um episódio traumático, pode “reativar” o estado de luto. “Embora ele não seja algo patológico, lutos vividos anteriormente que não tenham sido bem assimilados, ou mesmo não reconhecidos, podem ser ‘reativados’ a partir de uma perda recente e isso costuma desencadear processos de sofrimento mental, dentre os quais a depressão tem certa preponderância”, cita Luciano Bregalanti, pesquisador do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP) e autor da obra “Luto e Trauma”.
Lutos ignorados ou negligenciados costumam estar intimamente relacionados a quadros depressivos, em que os questionamentos trazidos pela perda deixam de ser mote de reorganização subjetiva e transformação e se tornam majoritariamente desesperança, frustração e paralisação
Luciano Bregalanti, pesquisador do IP-USP
Fases e apoio durante o estado de luto
Já citado, o luto é particular há cada indivíduo. Mas há, no geral, questões universais nesse estado. “O luto implica um trabalho, de inscrever uma perda no lugar que aquela pessoa amada habitava. O trabalho do luto exige certo ‘sacrifício’: não apenas constatamos que alguém se foi, mas devemos desinvestir os afetos que habitavam no conjunto de memórias, traços, daquela pessoa”, explica Leonardo Goldberg, psicanalista, ensaísta e doutor em Psicologia pela USP.
“Alguns autores falam de etapas: negação, aceitação, resignação, enlutamento. Mas isso acontece caso a caso, alguns demoram a vida toda para realizar um luto e há lutos que permanecerão contínuos”, afirma o pesquisador. Por isso, no caso do Campeonato Uruguaio, foi importante que os jogos fossem suspensos – algo que não ocorreu nos jogos do São Paulo após a morte de Izquierdo.
“A vida vem antes do jogo. É bastante importante para a sociedade ver o que o elenco do São Paulo fez para homenagear o Izquierdo e resgatar quais valores são primordiais”, aponta Eduardo Cillo, coordenador de psicologia do Comitê Olímpico do Brasil (COB). “(O luto) É o tipo de situação que pode gerar instabilidade emocional, perda de foco e concentração.”
O luto é, antes de tudo, um fenômeno social e coletivo. Por esse motivo, é importante entender os impactos desse fenômeno no entorno de cada indivíduo e cuidar para oferecer apoio a estes, apontam especialistas ouvidos pela reportagem. Além disso, não há um tempo pré-definido para que uma pessoa deixe de estar enlutada. “De certa maneira o luto nos acompanha por toda a vida, embora após certo trabalho de elaboração possamos encontrar formas de seguir interessados na vida”, pontua Bregalanti.
No caso do São Paulo, o clube colocou à disposição um psicólogo para assistir os atletas após a parada cardíaca de Izquierdo. Essa é uma tendência, tanto no ambiente esportivo, quanto no corporativo. Na Olimpíada de Paris, por exemplo, o COB levou dez psicólogos junto com a delegação brasileira, assim como um psiquiatra – pela primeira vez em uma edição de Jogos.
“A dinâmica corporativa deve incluir em seus cuidados a possibilidade de que os trabalhadores tenham tempo e espaço para elaborar seus lutos. Há uma dimensão individual e também coletiva no enlutamento, e o trabalho de luto depende também do rito social para que seja realizado”, defende Goldberg. “Em algumas culturas, há mudança de vestimenta, hábitos, e isso deve ser pensado – e não ignorado, negado ou escamoteado – na dinâmica do mundo do trabalho.”
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