Como vivem e treinam os atletas durante a guerra na Ucrânia: ‘É perigoso, mas é nossa vida agora’

Esporte ucraniano mantêm a competitividade em certos níveis, mas instalações destruídas e rotina tensa fazem parte da rotina

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Foto do author Bruno Accorsi
Foto do author Ricardo Magatti

O ginasta ucraniano Oleg Verniaeiv foi campeão das barras paralelas e medalhista de prata do individual geral nas Olimpíadas do Rio, em 2016. Não esteve em Tóquio, em 2021, porque cumpria punição de quatro anos por doping. Reverteu a sanção em 2023, ao provar que o consumo da substância proibida meldonium se deu sem intenção de se dopar, e foi aos Jogos de Paris, onde passou noites mal dormidas, atrapalhado pelas notificações de seu celular que avisavam sobre ataques aéreos russos na Ucrânia, às vésperas das competições.

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Na noite anterior à final do individual geral, na qual terminou em sétimo lugar, Verniaeiv recebeu um alerta por volta das 19 horas, e mais um cerca de uma hora depois. A cada aviso, disparava mensagens e fazia ligações para saber se familiares e conhecidos estavam em segurança.

“Toda a noite nós tivemos alarmes. Nosso telefone apita, não importa onde você está. Alemanha, Polônia, França… seu celular ucraniano sempre envia sinais sobre ataques aéreos e você, claro, acorda de noite. Você diz ‘que merda!’ e começa a olhar as notícias, tenta falar com sua família, com aqueles que ficaram na Ucrânia”, conta o ginasta ao Estadão. “Você não dorme bem, não se prepara direito, não tem a máxima força, mas não há escolha. Temos que dar nosso máximo.”

Ginasta ucraniano Oleg Verniaiev foi medalhista de ouro e prata no Rio em 2016. Foto: Reprodução/Instagram @verniaiev13

Verniaiev é natural de Donetsk, uma das regiões anexadas à Rússia por meio da invasão. Hoje, embora viaje bastante pra competir, mora na capital Kiev, alvo constante de ataques aéreos. Os alertas que o ginasta recebe no celular quando está viajando tomam forma mais dramática dentro do território ucraniano. Virou rotina treinar ao som de sirenes que alertam para o risco iminente.

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“Quando seu dia começa, você nunca sabe quando o alarme vai tocar. Você precisa escolher ir para um lugar seguro e perder seu tempo de treinamento ou ficar no ginásio e treinar, porém sem estar em segurança. É como escolher entre sua vida e o esporte. Mentalmente, é muito difícil porque quando você escuta o alarme, você não pode focar 100% no seu treinamento. E, olhe, ouvir o alarme é uma situação. Mas, quando você olha para o seu celular, e vê notícias sobre drones, mísseis voando para Ucrânia, é cada vez mais assustador”, afirma.

Mesmo com o medo constante, o campeão olímpico mantém a rotina de treinamentos no Centro Olímpico Educacional e Esportivo Koncha-Zaspa, em Kiev. Seus pensamentos se dividem entre a preocupação com conhecidos que estão na linha de frente, o risco ao qual está exposto constantemente e os movimentos que deve fazer em cada aparelho de ginástica.

Muitas pessoas me perguntam: como você está treinando? Minha resposta é: se você quer entender como nós treinamos, como estamos nos sentindo, venha à Ucrânia por três ou quatro semanas. Eu posso falar mil palavras, mas você não vai entender porque você não sente isso. Apenas estando aqui você consegue sentir. É muito perigoso, mas é nossa vida agora.

Oleg Verniaiev

Cerca de 500 atletas e treinadores ucranianos morreram durante a guerra, de acordo com os últimos números oficiais divulgados pelo governo, em agosto, após os Jogos de Paris. Além disso, mais de 500 instalações esportivas foram destruídas ou danificadas. É o caso do complexo esportivo ‘Meteor’ - localizado em Dnipro e conhecido principalmente por suas piscinas - , que foi atingido por ataques mais de uma vez, mas foi reparado e está recebendo atletas.

Já outros equipamentos sofreram danos e impactos profundos, como o Estádio de Chernihiv, destruído por bombardeios. O espaço era a casa do FC Desna, que disputava a primeira divisão do Campeonato Ucraniano quando o conflito escalou, mas não se viu em condições de voltar a jogar na retomada e encerrou as atividades profissionais.

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O Shakhtar Donetsk, time ucraniano de maior sucesso internacional e do qual Verniaiev é torcedor, teve de abandonar sua casa original antes da invasão promovida por Vladimir Putin. Ainda em 2014, por causa do conflito armado entre separatistas pró-Rússia e o governo, na esteira da anexação da Crimeia, o clube passou a mandar jogos em Lviv, perto da fronteira com a Polônia, antes de novas mudanças para Kharviv e, depois, Kiev.

Sempre em fuga, o Shakhtar foi forçado a continuar sua jornada como equipe nômade por causa da escalada da guerra em território ucraniano em 2022. Para pode jogar a Champions League da temporada 2022/2023, mudou sua base temporariamente para Varsóvia. Em 2023/2024, fez de Hamburgo sua casa para a disputa do torneio continental. Na atual temporada, joga os jogos da Liga dos Campeões na Veltins-Arena, em Gelsenkirchen, na Alemanha, e usa a Arena Lviv no campeonato nacional.

O atacante brasileiro Kevin, revelado pelo Palmeiras e vendido ao Shakhtar em janeiro deste ano, vive a rotina itinerante do clube há quase um ano e, embora habituado, admite que há um desgaste em razão do deslocamento.

“Eu me acostumei, já estou aqui há quase um ano. Tenho um apartamento, mas como tem bastante jogo, a gente fica também em um resort. Eu prefiro ficar no resort, porque tem o pessoal do clube mais perto. É bem difícil, porque os jogos do Ucraniano são aqui em Lviv, e os da Uefa são na Alemanha. A gente tem que sair daqui de Lviv e passar pela fronteira para pegar um avião no aeroporto da Polônia”, explica o ex-palmeirense.

Lviv, onde o jovem jogador de 21 anos mora, foi alvo de um recente ataque de míssil, em setembro, que deixou 51 mortos, mas é considerada uma das cidades mais seguras do país, muito em razão de sua proximidade com a Polônia, membro da Otan. Kevin pensou bastante antes de decidir jogar na Ucrânia e, hoje vivendo no contexto de uma guerra, não se arrepende.

Kevin chegou ao Shakthar em janeiro. Foto: Reprodução/Shakhtar

“A proposta do Shakhtar não chegou nesse ano, já tinha mais ou menos um ano que eu estava pensando se viria para cá. Cheguei aqui, e confesso que me impressionei porque eu esperava coisas piores pelo que eu ouvia e via na televisão, lá no Brasil. Para um país passando por uma guerra, está bem arrumado. E a gente vive em uma cidade mais tranquila”, diz.

O atacante teve a seu favor no processo de adaptação a companhia de outros brasileiros do elenco, como Vinícius Tobias, Marlon Gomes, Eguinaldo, Newerton e Pedrinho. Mesmo podendo sentir um pouco do Brasil, não está alheio à guerra e busca se informar com os companheiros de clubes para entender melhor o complexo conflito em curso na Ucrânia.

“É bom saber o que está acontecendo no país onde você está. Quando a gente quer saber alguma coisa mais sobre o que tá acontecendo aqui, a gente pergunta para os jogadores ucranianos”, afirma.

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Presente e futuro do Esporte na Ucrânia

Ter uma guerra em curso em seu território não impediu o esporte ucraniano de conseguir alguns resultados expressivos. Nos Jogos Olímpicos de Paris, conquistou três ouros, cinco pratas e quatro bronzes. A grande estrela do momento entre os atletas da Ucrânia é Yaroslava Mahuchikh, campeã olímpica do salto em altura e atual detentora do recorde mundial, com 2,10 m estabelecidos também em Paris, mas em etapa da Diamond League.

Assim como boa parte dos desportistas ucranianos, Yaroslava se envolve e se posiciona publicamente sobre o conflito com a Rússia. Recentemente, revelou ter feito doações às forças armadas do país. “Dinheiro não é nada comparado ao que passamos como time. E nada comparado ao tanto que as forças armadas e os voluntários fazem por nós para que vivamos em um país independente e livre. Se eu puder usar o dinheiro dessa forma, farei isso”, disse.

Yaroslava e mais atletas - como a esgrimista Olga Kharlan, medalhista de ouro por equipes e prata no individual em Paris-2024, e o boxeador campeão olímpico Oleksandr Khyzhniak - têm mantido a competitividade do esporte da Ucrânia.

Existe, contudo, forte preocupação com o futuro. Em meio a instalações danificadas e migrações de famílias inteiras em virtude da guerra, é um desafio formar novos atletas. Oleg Verniaiev assumiu tal missão há cerca de um ano e maio, quando fundou uma escola de ginástica.

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“Muitas pessoas, muitas crianças, muitas mães deixaram o país e perdemos muitos jovens atletas em perspectiva de serem bons atletas, em todos os esportes. Alguns estão de volta, outros não. Agora, nós faremos nosso máximo para dar chances de nossas crianças de treinarem e fazerem esportes. É fantástico quando pequenas crianças vêm até você, treinam e você vê quando elas conseguem resultados, fazem algo novo. Quando você vê isso, a emoção das crianças, você entende que precisamos fazer o máximo por elas Não podemos deixar que elas percam a juventude delas”, afirma.

Verniaiev trabalha no próximo passo de seu projeto, com foco em incluir crianças com deficiência em suas aulas de ginástica, inspirado em iniciativas do tipo que viu durante viagens por outros cantos da Europa.

“Queremos trabalhar esse sentimento de que elas não são especiais, são crianças normais. Eu sou um campeão olímpico, e eles vão ser treinados por mim. E nós queremos começar essa nova linha, é nosso sonho. Você sabe, eu passo muito tempo na Europa e eu vejo como muitas pessoas fazem trabalhos com essas crianças, fazem competições para elas. Nossa ideia é fazer algo parecido no nosso país. Vamos tentar fazer isso. Eetou um pouco assustado porque eu não tenho essa experiência, mas quero muito fazer isso. Vou trabalhar duro com meu time para ajudar essas crianças”, diz.

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