Em novembro de 2020, o maratonista aquático e preparador físico Paulo Bicudo viveu os piores momentos da vida. Começou sentir dores horríveis e as pernas paralisaram. O diagnóstico foi hérnia distal, entre a T8 e a T9. Ele teve um estrangulamento da medula e foi parar na mesa de cirurgia na véspera do Natal daquele ano. Os médicos colocaram no seu corpo duas placas e sete parafusos. O pós-operatório foi tenso, e as dores eram insuportáveis. O médico receitou cannabis medicinal, mas por puro preconceito, Bicudo recusou o tratamento.
A vida inteira ele ouviu o termo "maconheiro" como um xingamento, sinônimo de vagabundo, parasita social, drogado. Ele preferia ficar com as dores intensas e diárias, que roubavam até o sono, do que usar uma "droga", se tornar um "maconheiro". E foi no trabalho como preparador físico na Care Club que conheceu os Atletas Cannabis e médicos, que prescrevem cannabis medicinal. Ele não fazia ideia de que a famigerada "maconha" poderia ser um remédio. No dia a dia foi recebendo mais informações, constatou que os Atletas Cannabis não eram "drogados", que era preciso rever os conceitos. Deu um Google e descobriu que havia pesquisas que comprovavam o efeito desse remédio. Foi percebendo que estava errado.
"Falta informação e conhecimento, demorei mais de um ano para quebrar o preconceito estúpido que eu tinha com a cannabis medicinal", revela Bicudo, que viu as dores aumentarem e, um certo dia, não conseguiu se levantar, não sentia as pernas novamente. E foi aí, que venceu o preconceito. Foi procurar o médico, dizer que tinha voltado atrás.
Com o tratamento com a cannabis medicinal as dores diminuíram muito e ganhou qualidade de vida. A dormência nas pernas ainda não desapareceu de vez, mas não ficou mais paralisado. "E já tenho planos de voltar a fazer uma maratona aquática, provar que posso", conta.Bicudo atua desde 2010 com preparação e desenvolvimento da natação para águas abertas, em busca constante pelo desenvolvimento técnico e físico de atletas amadores. "Como ultramaratonista aquático busco levar aos meus alunos o conhecimento técnico e pessoal para ajudar a fomentar a prática esportiva saudável", explica.
A jornalista e corredora Roberta Palma, do "Jornal Corrida", passou por situação semelhante. "Na época da faculdade tinha horror a maconha, queria distância", conta. Mas no início dos anos 2000, ela apurou uma reportagem especial sobre o uso terapêutico da maconha para a revista "Mente e Cérebro", e os benefícios comprovados pelas primeiras pesquisas, e mudou radicalmente de posição. Em 2020, ela sofreu uma trombose cerebral e desde então começou a ter que conviver com dores crônicas terríveis. Há seis meses começou um tratamento com cannabis medicinal para dor crônica e tem tipo bons resultados. Ela até começou a contar sua experiência em uma webserie, no Instagram do "Jornal Corrida". E o único problema da cannabis medicinal é o preço, ainda muito elevado por se tratar de produto importado.
A desinformação, o preconceito e a falta de recursos para viabilizar pesquisas clínicas são os principais entraves no Brasil e até no mundo para a utilização da cannabis medicinal, tanto no esporte, como em patologias diversas. Para jogar luz sobre esse tema, a Care Club, pioneira no serviço multidisciplinar integrado de saúde, e a Tegra Pharma, farmacêutica brasileira dedicada aos usos terapêuticos da cannabis medicinal, promoveram no início de outubro uma plenária, com a participação de Raphael Camargo, diretor de Marketing da Care Club; Jaime Ozi, vice-presidente do Grupo OnixCann; Roberto Beck, otorrinolaringologista, Doutor em Ciências pela FMUSP e integrante do corpo clínico da Care Club; Ana Gabriela Baptista, fisioterapeuta, especializada em canabinóides, diretora de Produtos da Tegra Pharma e perita judicial em cannabis medicinal; Bicudo e Atletas Cannabis. A Roberta Palma também participou.
Recentemente, até o Conselho Federal de Medicina publicou uma norma restringindo a aplicação da cannabis medicinal, sem dar nenhum estudo científico para embasar sua decisão. A repercussão foi tão negativa e logo a entidade voltou atrás.
Cannabis Medicinal no Esporte
As duas empresas se uniram há um ano e vêm mudando paradigmas, ajudando na desmistificação desse medicamento, com efeitos muito positivos no tratamento de inflamações, ansiedade, sono e tantos outros. No esporte, profissional e amador, é normal que o corpo apresente inflamações, dores, ou até mesmo sintomas de ansiedade, alterações de sono e apetite, e lesões. E nesses casos, quando bem ministrado por médicos, a cannabis medicinal tem apresentado bons resultados. Inclusive, as duas empresas se uniram para apoiar pesquisa clínica, liderada por dr. Beck com os Atletas Cannabis. O objetivo é montar um protocolo para esportistas. Vale lembrar que, no ano passado, assistimos a primeira Olimpíada com o uso liberado do CBD, um dos mais de 500 compostos da cannabis medicinal, e no fim do ano vamos presenciar a primeira Copa do Mundo.
Com o esporte mundial em pauta, o CBD virou assunto e alguns atletas amadores e profissionais começaram a procurar os médicos para "experimentar" o CBD. Dr. Beck explica que, por se tratar de um medicamento, seu uso é indicado em casos específicos por médicos e dentistas especializados. Não é uma prerrogativa do paciente. "Nosso corpo possui o sistema endocanabinoide e por isso a cannabis medicinal funciona tão bem, é com uma chave na fechadura certa", compara Ana. Dr Beck acrescenta que a principal função fisiológica desse sistema é modular o equilíbrio do corpo. Esse sistema é ativado por canabinoides, ou produzidos pelo próprio corpo humano (endocanabinoides) ou por fitoderivados extraídos da planta cannabis (fitocanabinoides).
FALSO OU VERDADEIRO
CBD é droga - Falso. Desde 2015, a Anvisa permite o acesso legal a produtos à base da cannabis medicinal no Brasil. A produção e fabricação ainda são proibidos. Os produtos são importados e ou finalizados no país. E só são vendidos com prescrição médica. Além do CBD, há outros canabinoides, como THC, CBN, CBG; e também terpenos (responsáveis pelo cheiro), flavonoides (responsável pela cor e sabor), entre outros.
Cannabis é doping - Verdadeiro. Até 2018, qualquer medicamento a partir de cannabis era considerado doping pela WADA (Agência Mundial Antidoping). Desde então, a agência tirou da lista do doping apenas o CBD isolado. O uso recreativo da cannabis e medicamentos com outros canabinoides são considerados doping. No entanto, em 22 de setembro de 2022, a WADA publicou uma revisão, aumentando a tolerância de THC (tetrahydrocannabinol), em fase de competição de 15 microgramas por milímetro de urina, para 150 microgramas, mesmo sem existir comprovação científica que o THC melhore a performance dos atletas. A regra se dá para manter o "espírito olímpico". "Os benefícios da utilização da cannabis medicinal são indiretos, com menos dor e dormindo melhor o atleta, consequentemente, terá um sistema imunológico melhor, ficará menos doente, e a performance melhorará. Estará em equilíbrio", destaca Beck.
CBD tem efeito psicotrópico - Falso. Quando usada recreativamente por adultos, a maconha, por causa do THC, altera a consciência, promovendo a euforia. Mas isso não ocorre na forma de medicamento.
O CBD dá sono - Verdadeiro. Uma das indicações do CBD é o tratamento da insônia, a depender da dose e tipo de fitocanabinóide utilizado.
CBD é em cápsulas - Verdadeiro. Os produtos derivados de Cannabis podem ser em forma de gotas (óleo), Roll On (dor muscular ou articular), loção (superfícies lesionadas) e cápsulas.
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