Joelho de corredor garante papo para mais de meia hora. Todo corredor amador que se preze tem uma técnica ou um conselho para compartilhar. Alguns até falam com a maior articulação do corpo humano, conhecem o som de cada "areinha" que parece sair de dentro da patela. Mas vamos ser sinceros, isso só acontece depois que surge a primeira dor fulminante, e depois a primeira lesão.
Já fui em tantos ortopedistas que até perdi as contas. Eles olham para a ressonância do meu joelho esquerdo com o mesmo brilho nos olhos que um funileiro olha para uma Ferrari amassada, doido para deixá-la novinha. Pena que no caso da ortopedia, as cicatrizes não sumam com a cirurgia. Faz parte do jogo. Sou canhota de perna, durante boa parte da infância e adolescência pratiquei muito balé, tanto que até fiquei dividida à época, se seguiria a carreira de dançarina ou fotógrafa. Modéstia parte, eu era boa nos saltos, nas piruetas triplas... Escolhi a segunda opção, depois o jornalismo foi uma evolução natural. Mas continuo amando dançar e fotografar.
Aos 23 anos conheci a corrida de rua e nunca mais parei. Só tive que fazer alguns intervalos forçados. Fui atropelada, quase morri. Passado o susto, rompi o ligamento cruzado anterior do joelho esquerdo ao levar um tombaço num degrau. E foi ai que fui apresentada para a fíbula, patela, tíbia, menisco, rótula, ligamentos, cartilagem, e bem-vinda ao mundo das artroscopias e da fisioterapia esportiva. A importância da musculação, do tônus, do fortalecimento do quadríceps. Desde então reparo nos joelhos. Essa articulação é mega complexa, e sem ela operando 100% o caldo entorna.
O ortopedista Dr. Samuel Lopes - especialista em joelho, chefe do Departamento de Ortopedia e Traumatologia da Santa Casa de Juiz de Fora (MG) - é também corredor amador, desde 2014. "Venho evoluindo nas corridas, e já tive algumas lesões. Fiz quatro meias maratonas nos últimos anos e estava me preparando para fazer um triatlo, 2020 seria um ano de grandes desafios, mas quase não corri. Adoro corrida e é algo que quero fazer para a vida toda", comenta. Ele explica que as quatro principais lesões de joelho são a síndrome da banda iliotibial que desencadeia uma dor na lateral do joelho, que incomoda mesmo, e é super frequente em corredor; a condromalácia patelar, tendinite patelar e fraturas por estresse. "Neste ano tivemos muitos casos de fratura por estresse, por conta da rotina de treino inadequada", cita o ortopedista, que concedeu entrevista exclusiva para o blog, confira os principais trechos abaixo, e a íntegra no vídeo.
Condromalácia - Condro vem de cartilagem e malácia seria uma patologia, ou seja, uma doença da cartilagem. Se formos buscar no termo, seria um amolecimento da cartilagem. Mas podemos entender como algo um pouco mais amplo, como uma condropatia. E são quatro os graus, de 1 - mais leve - a 4, mais grave, com a erosão da cartilagem, em alguns pontos não há mais cartilagem recobrindo o osso, e o osso abaixo da cartilagem, o subcondral, fica completamente exposto. Mas vale ressaltar que as alterações na cartilagem são muito frequentes em corredores, é raro que não tem. Nem sempre isso é um problema. E ter condromalácia não significa que o corredor vai desenvolver artrose. Há outros fatores, como obesidade, que podem agravar o quadro no futuro. E não é a corrida que vai causar a artrose, mas a condição ósseo muscular do paciente. Nos casos de condomalácia, é necessário adaptar os treinos. Temos que pensar em uma evolução gradual dos treinos, na periodização adequada, ter um trabalho de fortalecimento dos grupos que envolvem o joelho - quadríceps, quadril, principalmente o glúteo médio; musculatura central (core abdominal), observar a biomecânica da corrida. Mudar um pouco a postura e a cadência, também podem proteger. E é bom citar a síndrome dolorosa fêmur patelar, que é um complexo de alterações que se manifestam no joelho, ou ao redor da patela, que na maioria da vezes tem um grau de condropatia, muito mais associado a uma sobrecarga e desequilíbrio muscular. O paciente pode ter uma compensação do pé que gera uma alteração do ângulo do joelho durante a corrida. E todas essas variáveis físicas e anatômicas são muito mais importantes do que o grau da condropatia. É necessário encaminhar o paciente para o físio, que vai fazer uma avaliação da biomecânica, depois conversar também com o treinador, e com o corredor, para que obedeça os treinos.
Menisco - É ele que dá estabilidade ao joelho, segurando os choques - junto com a cartilagem . A lesão mais frequente em corredores é a traumática, principalmente nos casos de mudança brusca de direção; em corrida em trilha esse lesão é mais frequente ainda. O sintoma é dor, quando corre, dói; quando agacha, dói. Uma dor bem pontual e localizada, ou na parte interna ou na externa - nas laterais do joelho. E quando são lesões muito grandes, o que não é comum na corrida, o menisco pode até travar um pouco, dificultando dobrar ou esticar por completo o joelho. A outra lesão mais comum de menisco é a degenerativa,associadas aos pacientes mais idosos que vão sofrendo com o desgaste ao longo da vida e também por fatores associados, como; sobrepeso, obesidade, falta de exercício físico..
Fraturas por estresse - Este ano atendi muitos desses casos. No começo da pandemia, todo mundo parou e perdeu o condicionamento físico, mas quando liberaram as atividades na rua muitos voltaram com muita intensidade. E como você volta com muita intensidade, mas sem o condicionamento necessário surgem as fraturas por estresse. Você gera uma sobrecarga que o osso não suporta. O treinador manda correr 10k, a pessoa corre 12k. São quatro treinos semanais, a pessoa corre a semana toda. Isso tudo vai acumulando e o osso não dá conta. E esse ano tivemos casos demais. E vale lembrar, que depois de uma correta reabilitação, você vai voltar a correr, tem que ter paciência.
Tendinite patelar - Podemos entender o termo como inflamação do tendão. Há também as tendionopatias, que são os gruas de degeneração do tendão. Geralmente são associados. Especificamente na corrida é mais observada a tendinite, que uma das principais lesões por sobrecarga. O corredor aumenta a demanda sobre o tendão, estão muito relacionado com corrida em subida ou descida, quando você solicita mais a região anterior do joelho. É provocada por aumento de carga, aumento de intensidade, corrida com inclinação e treinamento inadequado, principalmente de volume e intensidade, que desencadeia uma inflamação aguda sobre o tensão patelar. O grau mais leve é quando a pessoa só sente dor depois que corre. No grau dois, a dor já é sentida durante a corrida; no 3 o corredor tem dor durante toda a corrida e não consegue performar como antes; e no 4 quando há ruptura do tendão. Quando surgir a primeira dor após o treino e hora de falar com o treinador e modificar o treino, às vezes pode ser até o tênis inapropriado, e já procurar o ortopedista e se cuidar.
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