THE NEW YORK TIMES - São tempos de leite e mel para quem vive, respira e ganha a vida com xadrez. Mas, assim como muitos parentes brigam por um pedaço de pão à mesa de jantar, parece que os melhores enxadristas do mundo não conseguem parar de se engalfinhar pela integridade do esporte.
O episódio mais recente envolve Hikaru Nakamura, uma das maiores estrelas do xadrez, e Vladimir Kramnik, que foi campeão mundial de 2000 a 2007. No mês passado, em uma série de posts no Chess.com, o site de xadrez mais popular do mundo, o russo Kramnik insinuou que Nakamura provavelmente tinha trapaceado em jogos online. Nakamura ainda não respondeu a um pedido de comentário para este artigo.
Em uma postagem que depois excluiu, Kramnik escreveu, sem mencionar o nome de Nakamura, que, em uma sequência de 46 jogos, “um jogador” vencera 45 partidas e empatara uma. Kramnik então concluiu: “Acho que todo mundo vai achar isso bem interessante”.
Depois que ficou claro que Kramnik estava se referindo a Nakamura, ele acrescentou em outra postagem, no dia 21 de novembro: “Depois de analisar cuidadosamente as estatísticas de Hikaru, descobri VÁRIAS probabilidades bem baixas, tanto do desempenho dele quanto de alguns de seus oponentes”. Em outras palavras, ele deu a entender que os resultados de Nakamura eram muito suspeitos.
Quando contatado para comentar o assunto na sexta-feira, Kramnik disse que não era isso que ele queria dizer. Quando um repórter observou que suas palavras poderiam ser mal interpretadas, ele disse: “É claro que não é uma acusação”, acrescentando que as pessoas poderiam interpretar seus comentários como bem quisessem.
No domingo, o Chess.com fechou o blog de Kramnik e silenciou sua conta. Em um comunicado nas redes sociais, o Chess.com disse que havia se reunido com Kramnik “inúmeras vezes” e acrescentou: “Nossa equipe investigou cuidadosamente muitas dezenas de jogadores sobre os quais o GM Kramnik levantou suspeitas. Na grande maioria dos casos, consideramos suas acusações infundadas”.
Kramnik disse por e-mail que recebera de um colega a notícia do encerramento da conta, não diretamente do Chess.com. Ele acrescentou que não tinha sido advertido e que nos últimos dois meses não houve “uma única tentativa de comunicação por parte deles”.
Nakamura não é apenas um dos melhores jogadores do mundo, é também um dos streamers mais populares do xadrez, com cerca de 2 milhões de seguidores em seus canais Twitch e YouTube. Ele não gostou das alegações de Kramnik. Nakamura disse que Kramnik estava “escolhendo as estatísticas a dedo” e comentou em uma de suas transmissões ao vivo: “Você não pode fazer acusações falsas quando não é especialista. Você não pode fazer acusações falsas quando não tem dados para fundamentar o que diz”.
Como são dois jogadores de primeira linha, a controvérsia varreu o mundo do xadrez. Matemáticos e enxadristas amadores entraram com suas opiniões e análises estatísticas.
O Chess.com, que tem seu próprio sistema para detectar trapaças, postou um comunicado dizendo: “Levamos todas as acusações de trapaça a sério. No caso das recentes acusações de Vladimir Kramnik contra Hikaru Nakamura, geramos quase 2 mil relatórios sobre os jogos de Hikaru em nosso sistema Fair Play e não encontramos nenhum incidente de trapaça”.
Kramnik ficou indignado com a declaração. Em uma postagem de blog no mesmo dia, ele escreveu: “Chamar meus esforços para ajudar a melhorar a eficiência anti-trapaça da plataforma Chess.com de ‘acusações de Vladimir Kramnik contra Hikaru Nakamura’ é uma clara desinformação pública que obviamente pode causar enormes danos à minha imagem”. Ele exigiu que o Chess.com retirasse a declaração, ameaçando processar se o site não o fizesse. Até o momento, o Chess.com não retirou a declaração.
Antes de sua conta ser silenciada, Kramnik disse ao New York Times que estava “chocado” com a reação de Nakamura e do Chess.com ao que ele escrevera e que vinha sofrendo com danos à sua reputação e à sua família. Ele disse que recebera pelo menos uma ameaça de morte no Chess.com e que, quando denunciou o fato aos administradores do site, eles baniram a pessoa que a enviara. Ele disse ainda que o site não tomou nenhuma atitude além disso e não pediu desculpas a ele.
“Parece que eles não estão fazendo o que podem para enfrentar a trapaça”, disse Kramnik, “então seguirei fazendo isso sozinho”. Ele acrescentou que pretende abrir uma ação judicial contra o Chess.com e contra Nakamura. Não deixa de ser interessante que Nakamura esteja envolvido em uma confusão na qual é acusado de trapaça, porque, no ano passado, os papéis estavam invertidos.
Este outro caso envolveu Magnus Carlsen, o jogador mais bem classificado do mundo e ex-campeão mundial, que acusou Hans Niemann, uma estrela americana em ascensão, de trapaça logo depois que Carlsen perdeu para ele em um torneio em St. Louis. Carlsen se retirou do torneio. Pouco depois, o Chess.com divulgou um relatório dizendo que Niemann havia trapaceado em até 100 partidas de seu site ao longo dos anos. Niemann admitiu ter trapaceado duas vezes no site, anos antes do jogo contra Carlsen. Um representante de Carlsen não respondeu a um pedido de comentário.
Nakamura apoiou abertamente Carlsen durante o episódio, apontando o relatório do Chess.com como prova de que Niemann não era confiável. No alvoroço que se seguiu, Niemann abriu um processo contra Carlsen, Nakamura e o Chess.com, pedindo US$ 100 milhões. A Federação Internacional de Xadrez, também conhecida como FIDE, órgão regulador do esporte, abriu uma investigação sobre o ocorrido.
O processo chegou a um acordo em agosto, sob termos não revelados, e Niemann foi autorizado a voltar a jogar no Chess.com, sem restrições.
Em entrevista, Erik Allebest, um dos fundadores do Chess.com e seu CEO, descreveu a atual relação entre o site e Niemann como “muito profissional”, embora tenha admitido que Niemann vinha “ignorando” os contatos dele e de Danny Rensch, o diretor de xadrez do site, desde a reintegração. Este mês, a federação, que evitou comentários para não atrapalhar o andamento do processo, divulgou seu relatório. Foi mais um suspiro que um estrondo.
A federação concluiu que Niemann não havia trapaceado contra Carlsen durante o jogo em St. Louis. E também que Carlsen se comportara de maneira inadequada ao se retirar do torneio.
Acusações imprudentes vão contra ética de enxadristas
A federação tem um código que proíbe os enxadristas de acusarem imprudentemente outros jogadores de trapaça, mas constatou que uma confissão de trapaça online por parte de Niemann e o relatório do Chess.com deram a Carlsen motivos suficientes para duvidar da idoneidade de Niemann.
A federação também concluiu que Carlsen não havia atacado a reputação de Niemann nem prejudicado o esporte. Na verdade, o relatório sugeriu que a controvérsia tinha sido positiva, porque “pode ter despertado o interesse e a atenção de muitas pessoas”.
Carlsen foi multado em 10 mil euros (cerca de R$ 53 mil) por sua saída do torneio por um motivo considerado inválido. Carlsen ganhou dezenas de milhões de dólares com o xadrez, então a multa provavelmente não fará diferença. “Estou feliz por encerrar o caso”, disse Carlsen à TV 2 em Toronto, onde estava jogando a final do Champions Chess Tour este mês. “Está claro que poderia ter acontecido coisa pior”.
O que deu o caso Carlsen versus Niemann?
Terrence Oved, advogado de Niemann, escreveu por e-mail na sexta-feira que Niemann não estava satisfeito com a decisão da federação contra Carlsen. Oved disse que a federação tinha se equivocado, pois Carlsen acusou Niemann de trapaça antes de Niemann admitir que tinha trapaceado e antes de o Chess.com divulgar seu relatório. Oved acrescentou que seu cliente considerou a multa muito baixa diante dos danos causados pelas acusações de Carlsen.
Quanto a Niemann, ele teve uma má sequência em competições nos últimos 12 meses, enquanto o processo e a controvérsia se desenrolavam e sua classificação mundial caía. Mas, em um torneio que terminou em 1º de dezembro em Zagreb, na Croácia, Niemann teve um desempenho excepcional. Diante de vários grandes mestres fortes, ele venceu sete partidas, empatou duas e não perdeu nenhuma. Terminou em primeiro lugar, três pontos à frente do adversário mais próximo. Foi o equivalente a um corredor dar uma volta no segundo colocado em uma corrida de 1.600 metros.
Niemann postou na plataforma de mídia social X, antes conhecida como Twitter, uma foto sua ao lado de uma foto de Bobby Fischer, campeão mundial americano que teve uma atuação extraordinária na mesma cidade 53 anos atrás, com o comentário: “Dois americanos solitários contra o mundo, enfrentando obstáculos imensuráveis”.
Poderia ter sido o fim dessa história, mas um dos enxadristas que ele derrotou, Ivan Sokolov, disse em um post que os movimentos de Niemann correspondiam aos dos melhores computadores de xadrez em 98% das vezes. Sokolov também escreveu que o torneio tinha adotado poucas medidas anti-trapaça. Sokolov não foi encontrado a tempo para comentar.
Os organizadores do evento também postaram no X e pareceram implicar Niemann: “O desempenho de Niemann é uma coisa de outro mundo, mas não temos provas definitivas de que ele esteja trapaceando. Temos alguns indícios, mas não sabemos se alguém vai querer denunciá-lo”.
Os organizadores do evento não responderam a um pedido de comentário. Oved, advogado de Niemann, disse que o post dos organizadores fazia parte das consequências do episódio com Carlsen. “Sempre que Hans vencer, alguém vai acusá-lo de trapaça”, disse ele. “Mas Hans provou ser incrivelmente forte e resistente”.
Série de torneios somam US$ 2 milhões em prêmios
Por trás de tudo isso, os torneios de xadrez hoje têm mais prêmios e espectadores do que nunca. O Chess.com acaba de encerrar o Champions Chess Tour, uma série de torneios que dura o ano todo e apresenta os melhores jogadores do esporte, com US$ 2 milhões em prêmios. Carlsen foi o campeão. O site também está se aproximando de 160 milhões de membros.
Allebest disse que o Chess.com estava fazendo o que podia para acabar com a trapaça e evoluindo seus métodos para detectar trapaceiros. Ele admitiu que algumas pessoas ainda conseguiram escapar impunes, embora tivesse certeza de que esse número era muito pequeno. O que Kramnik fez não ajudou, disse Allebest. “Suspeitar não é a mesma coisa que ter certeza”, acrescentou ele. “Francamente, espalhar suspeitas não ajuda. Só gera histeria”.
Este artigo foi originalmente publicado no New York Times./TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
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