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Dunga sobre futebol brasileiro: ‘Daqui a pouco, europeus vão comprar jogadores na barriga da mãe’

Capitão do Tetra fala com exclusividade ao ‘Estadão’ sobre bastidores da conquista nos Estados Unidos em 1994, Neymar, Dorival Júnior e momento atual da seleção

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Por Gabriel Batistella
Atualização:
Entrevista comDungaTreinador e ex-jogador de futebol

Em 17 de julho de 1994, o Brasil quebrava um jejum de 24 anos e voltava a ser campeão da Copa do Mundo ao vencer a Itália, nos pênaltis. A quarta estrela no peito viria, e os heróis daquela geração ficaram marcados para sempre. O gesto de Dunga, capitão, erguendo o troféu no estádio Rose Bowl naquela tarde seria eternizado.

Hoje, Dunga vive longe dos holofotes do futebol, mas presente em algo muito maior do que isso com o seu instituto, que auxilia entidades, instituições beneficentes e comunidades carentes do Rio Grande do Sul. O ex-camisa 8 foi figura presente há alguns meses, enquanto o estado gaúcho sofria com as enchentes que vitimaram centenas.

Desde 2016, quando teve encerrada sua segunda passagem como técnico da seleção brasileira, Dunga tem pouco aparecido no meio do futebol. Convites, segundo o próprio, não faltaram.

Dunga levanta a taça de campeão da Copa do Mundo de 1994. Foto: Masao Goto Filho/Estadão

Em entrevista ao Estadão, o capitão do tetra falou sobre diversos assuntos, sempre com sua opinião contundente, e relembrou aquela conquista histórica nos Estados Unidos.

Liderança na seleção brasileira

A esse respeito, tinha que estar lá dentro para ver o dia a dia, né? O líder não é criado de uma hora para outra. Ele vai aos poucos, com as suas atitudes e com as suas ações. Ele vai adquirindo essa liderança perante o restante do grupo. Eu acredito muito que o líder não se mostra quando ganha, mas quando as coisas estão difíceis. É aí que surge o líder, na hora de tomar decisões difíceis. Decisões que não são muito simpáticas para alguns, mas que são importantes para o coletivo, não é?

Acho que ser transparente e falar a verdade são algumas características do líder. Mas eu acredito que ele emerge naturalmente. Não é só uma questão do líder em si. Ele vai tomando esse papel, mas ele é construído justamente com o coletivo. Quem vai dar sustentação para o líder é o coletivo. Uma coisa está atrelada à outra. Não adianta só ter um líder se não há alguém que o suporte. E não adianta ter o grupo se não há esse líder que toma decisões nos momentos mais difíceis da situação.

Como era a relação com Zagallo e Parreira no dia a dia?

Ele era um cara que tinha vontade de vencer, um cara superpositivo. Nos piores momentos, ele continuava sendo positivo, né? Assumia a responsabilidade. Ele ensinou a todo mundo que a seleção brasileira era a nossa segunda pele, né? Que é a amarelinha. Então, coisas assim marcaram muito a nossa trajetória.

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O Parreira era muito claro no que transmitia para nós, no que queríamos e como nosso time jogava. Jogávamos com sincronia, todos sabiam o posicionamento. Quando assistíamos aos nossos vídeos, passávamos sem precisar olhar, porque já sabíamos o que cada jogador ali faria na marcação, na saída com a bola, no posicionamento do Bebeto, do Romário, do Zinho. Todos viam isso.

Há quem diga que éramos um time enceradeira, mas ninguém lembra que jogávamos sob 37, 38 graus. Zinho segurava a bola para o time recuperar energia, respirar e se posicionar em campo, então ele era fundamental. Hoje os caras falam em quebra de linha, mas nós treinávamos exaustivamente, com Mazinho e Zinho atrás das duas linhas defensivas e do meio de campo. Quando um pegava a bola, o outro entrava, quebrando as costas da defesa. Bebeto e Romário puxavam a defesa adversária para criar espaço no meio de campo. Os caras falam de futebol moderno, mas nós tínhamos posse de bola. Jorginho, Cafu, Leonardo, Branco sempre davam a bola. O goleiro jogava sempre no meio do campo do time adversário. A forma como Parreira e Zagallo treinaram nosso time era assim: sabíamos o posicionamento, onde cada jogador estava. Quando roubávamos a bola, já sabíamos onde colocá-la de primeira. Tínhamos essa noção, cada um sabia bem seu posicionamento.

Qual foi o jogo mais difícil e o mais emocionante da campanha?

Foi muito difícil para nós o jogo contra os Estados Unidos, por causa do ambiente em geral, né? Era o Dia da Independência dos Estados Unidos, um país sem tradição no futebol. Nós tivemos um jogador a menos, jogando num calor intenso. Tu imagina, o Brasil 24 anos sem ganhar, e a cobrança.... Imagina ser eliminado novamente nas oitavas por um país sem tradição que era o organizador. Então, esse jogo ali mostrou que a nossa equipe estava madura, que nós queríamos. As mexidas táticas do Parreira foram fundamentais naquele jogo. Uma das coisas que ele pediu foi para o Bebeto jogar pelo lado direito, a colocação do Cafu, porque fisicamente o Cafu era um monstro, né? O Branco vinha de lesão, então o Parreira teve essa percepção. Depois daquilo, só foi embora.

E aí o jogo que foi emocionante foi contra a Holanda. Dois dias antes do jogo, estava 38°C, 40°C, todos os vídeos que a gente via, a Holanda não conseguia jogar o primeiro tempo e morria. Então a gente estava feliz, porque fisicamente, nós estávamos inteiros. Só que chegou na véspera do jogo, caiu uma chuva, e a temperatura baixou para menos de 20°C, e aí a Holanda jogou controlando, uma grande seleção. Mas ali o Brasil mostrou novamente a maturidade e a consciência para vencer a partida.

Estão comprando nossos jogadores com 17 anos. Daqui a pouco eles vão comprar na barriga da mãe

Dunga, ex-jogador e campeão do mundo em 1994

O Brasil está atrasado em relação aos europeus no futebol?

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É, depende do ponto de vista. Quem é o último campeão do mundo? A Argentina. Quem é o melhor jogador do Real Madrid? Vini Jr. Então essa é uma discussão que os teóricos gostam de falar. Eles vêm comprar os nossos melhores jogadores. Primeiro, os teóricos falam que a nossa base não trabalha. Pô, esses caras vêm comprar nossos jogadores. Eles vinham comprar nossos jogadores com 27 anos, baixaram para 20, e agora estão comprando nossos jogadores com 17. Daqui a pouco eles vão comprar na barriga da mãe. E aí? Nós não temos participação nenhuma? Nós não temos criatividade, não temos bons treinadores? Lógico que os melhores jogadores nossos vão para a Europa muito jovens, né?

Será que a gente parou de ganhar quando a gente foi imitar os europeus? É uma boa pergunta. Será que quando a gente começou a falar muito, estudar, estudar, estudar, estudar, estudar, fazer cursos e mais cursos, a gente não ganhou mais nada? Mas veja bem, nós já estudávamos anteriormente da nossa forma. Só que nós estudávamos e não queríamos copiar a Europa. Nós estudávamos e fazíamos o jogador jogar com as nossas características. Aí no momento que a gente vai lá fora e quer introduzir dentro do Brasil uma filosofia que não é nossa, o nosso jogador tem que saber jogar, sabe?

Tem coisas que o futebol não muda. Ah, mudou a preparação, mudou a alimentação, uma série de coisas que vieram para ajudar, né? Antigamente o treinamento era massacrante, hoje o treinamento é mais específico, isso é bom. Só que a gente não pode querer copiar as coisas da Europa. Estamos copiando o Barcelona, só que nem o próprio Barcelona joga mais como jogava naquela época. Se tu pegar a seleção de 94, isso que os caras falam, essas palavras bonitas, transição, passe inteligente, quebra de linha... A seleção de 94 já fazia isso, a seleção de 70 com o Zagallo já fazia. Então só acelerou o ritmo, acelerou a velocidade.

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Isso que os caras falam, essas palavras bonitas, transição, passe inteligente, quebra de linha... A seleção de 94 já fazia isso

Dunga

E como agora estão falando, ah, o Brasil ficou atrás. Aí o Brasil levou 7 a 1. Dos 11 jogadores, quantos jogavam na Europa? Aí todo mundo vê e diz que o Brasil está atrasado. Pô, mas de 11, 10 jogavam na Europa. Como é que a gente pode estar atrasado?

Comparações da seleção de 1994 com a atual

A seleção de 70 era criticada, ganhou mudou. A de 94 também a de 2002 também. Quem pode mudar isso? Os jogadores dentro de campo. Se nossos jogadores jogam na Europa, é logico que eles tem qualidade. Mas na seleção tem que assumir, porque a responsabilidade na seleção é 10 vezes maior do que clube na Europa.. Talvez a única diferença que tenha da seleção de 94 para a atual é que o Taffarel, no Parma, era referência. O Jorginho, no Bayer, era referência como lateral. O Aldair, na Roma, era referência como zagueiro. O Mauro Silva, no La Coruña, era referência. O Bebeto era referência. O Branco, o Zinho, eram referência nos seus clubes, né? Hoje, pelo futebol ter mudado, os clubes são quase como uma seleção. Naquela época eram três jogadores estrangeiros por cada time, hoje não. Hoje tem 10, 12. Então, o que nós temos hoje como referência é o Vini Jr. Mesmo ele fazendo a diferença, arrebentando, ainda tem gente que fala que ele ainda não é completo.

Dunga durante ajuda a necessitados de seu instituto no Rio Grande do Sul Foto: Max Peixoto

Vini Jr. é o melhor jogador do mundo?

Pra mim, ele é o melhor do mundo. Se ele fosse europeu, pode ter certeza que 90% aqui no Brasil estariam dizendo que ele era o melhor do mundo, né? Como foi o Mbappé ano passado, né? Todo mundo só compara o Mbappé com o Vini Jr., né? ‘Ah, mas o Mbappé ganhou o Mundial’. Legal, o Vini ganhou duas Champions.

Neymar ainda tem espaço na seleção?

Dizer que ele é peça fundamental da seleção vai depender dele, certo? Agora, se você falar da qualidade dele como jogador, ele ainda é importante, sem dúvida. Se ele voltar da lesão com o mesmo ritmo e qualidade é um jogador diferenciado. No Brasil, há essa questão de não gostarmos muito da personalidade dos jogadores. É uma coisa. Mas como jogador, cara, é indiscutível.

As polêmicas recentes sobre a aparência dos jogadores da seleção

Ah, para mim, tudo que se fala demais é exagero. Acho que tudo na vida tem que ter equilíbrio, né? Nossa época não tinha essa moda de agora. Virou moda. Mas eu acho que a gente tem que falar do jogador, se ele joga ou não joga. O que ele faz é complementar, não diz muito a respeito.

É lógico, se tratando de Brasil, se tratando de futebol, principalmente seleção brasileira, tudo vende tanto para o bem como para o mal. Precisa ver se o jogador tem personalidade para suportar essa pressão, essa cobrança. Porque ele está de cabelo rosa, porque pode ter certeza, se ele tiver o cabelo preto e errar, ele vai ter um pouco de crítica. Mas se ele estiver com cabelo rosa e errar, os caras vão detonar ele. Aí precisa ver se o jogador está preparado para enfrentar isso, entendeu?

O trabalho de Dorival e a não vinda de Ancelotti

Ele está bem, se adequou bem no São Paulo e no Flamengo. A seleção brasileira está no caminho certo, um cara ponderado, e temos que apoiá-lo. Mas a gente tem que deixar o cara trabalhar, dar força para ele. Ele já mostrou no São Paulo, no Flamengo e no Ceará que tem qualidade, experiência... então temos que apoiar.

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Ninguém tinha certeza de que ele (Ancelotti) ia vir, né? Vamos lá, o treinador da Argentina tinha experiência? Ele fez um trabalho excelente, não foi? Não depende só do treinador, depende de toda uma estrutura ao redor dele, dos jogadores para vencer. A gente adora criticar os sul-americanos e elogiar os europeus. Claro que eles têm coisas boas, claro que são bons treinadores, mas eles precisam se adaptar. Você acha que o Ancelotti, que chega no Real Madrid e fala uma vez por semana com a imprensa, viria para o Brasil e teria que falar toda semana, sendo alvo de críticas à sua família? Você acha que ele conseguiria? Se é certo ou errado, não sei, mas é a cultura de cada país.

Principal memória da Copa de 1994

Nosso ambiente era muito, muito bom. Quando digo que o nosso ambiente era muito, veja bem, quando se gosta de uma pessoa, tem que dizer a verdade, certo? E aquele grupo dizia a verdade, mesmo que doesse. Gostávamos uns dos outros, mas era um pensamento coletivo, era para o bem do time. Então, quando falo que o ambiente era muito bom, não era só brincadeira e risada. Não, não era.

Quando tínhamos que apontar os erros uns dos outros e dizer que precisava melhorar, fazíamos isso porque queríamos vencer e, principalmente, porque tínhamos a compreensão de que dependíamos uns dos outros. E se eu visse alguém fazendo algo errado e não falasse, perderíamos. Então, eu tinha que cobrar, e ele tinha que me cobrar, para alcançarmos o resultado final.

No final, todos entendiam, talvez não gostassem da cobrança na hora, mas depois entendiam que era a mentalidade do grupo. E a lembrança da Copa de 94, uma lembrança que eu não esqueço, é na hora de bater o pênalti, né? Não consigo dormir tranquilo (risos).

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