‘A prisão das jogadoras do River Plate foi um marco na luta contra o racismo’, diz jurista

Jurista analisa episódio de discriminação no futebol feminino na semana passada e afirma que fala racista não é xingamento, mas crime previsto na legislação brasileira

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Entrevista comLívia Sant'Anna VazEscritora e promotora de Justiça do Ministério Público da Bahia

A prisão de quatro jogadoras do River Plate após atos racistas contra um gandula e as adversárias do Grêmio representam um diferencial na luta contra o racismo na visão da jurista Lívia Sant’Anna, uma das vozes mais potentes na luta antirracista no País.

“A prisão em flagrante foi efetuada em plena conformidade com a legislação vigente, o que nem sempre acontece em situações de racismo, diante da condescendência das organizações desportivas, do sistema de justiça e da própria sociedade”, diz a promotora de Justiça do Ministério Público da Bahia em entrevista exclusiva ao Estadão.

O ataque racista aconteceu na partida semifinal do torneio Brasil Ladies Cup, no Canindé, em São Paulo, no último dia 20. Candela Díaz, jogadora do time argentino, foi flagrada imitando um macaco em direção ao gandula, que foi defendido pelas jogadoras do Grêmio. O árbitro expulsou seis atletas da equipe argentina, forçando o encerramento do jogo.

Após a partida, as jogadoras foram levadas para a 6.ª Delegacia de Polícia em São Paulo, onde o caso foi registrado como injúria racial. Testemunhas foram ouvidas e acusaram as quatro atletas, que agora são investigadas. Na sexta-feira, elas conseguiram liberdade provisória, mas terão que permanecer no Brasil e se apresentar mensalmente no fórum.

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“O futebol tem o poder de transformar mentalidades. Portanto, a luta contra o racismo no futebol deve ser uma prioridade da sociedade”, diz a jurista.

Jogadores do River Plate foram presas após proferirem insultos racistas contra adversárias do Grêmio no Brasil Ladies Cup, no Canindé.  Foto: Reprodução/Sportv

Como analisa a prisão das jogadoras do River Plate após gestos racistas?

A Constituição Federal de 1988, como resultado da fundamental participação dos movimentos negros na Assembleia Constituinte, entre outros valores e medidas pertinentes, adota o repúdio ao racismo como princípio, classificando sua prática como crime imprescritível e inafiançável. Desde então, a legislação antirracista vem evoluindo no Brasil, ainda que a passos lentos.

No caso das jogadoras do River Plate, a prisão em flagrante foi efetuada em plena conformidade com a legislação vigente, o que nem sempre acontece em situações de racismo, diante da condescendência das organizações desportivas, do sistema de justiça e da própria sociedade.

O racismo é um crime grave, de significativa reprovabilidade constitucional e, portanto, atos racistas devem ser tratados com a seriedade que merecem.

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Nessa perspectiva, a prisão dessas jogadoras não deixa de ser um marco importante na luta contra o racismo, não apenas no futebol, mas no mundo esportivo como um todo. É crucial, portanto, a mensagem de que atos racistas como esse não serão tratados em descompasso com a lei e os valores constitucionais.

O que acontece depois que elas receberam a liberdade provisória?

A liberdade provisória foi concedida pela Justiça de São Paulo sob condições como o comparecimento em juízo mensalmente para justificar suas atividades e o pagamento do valor de R$ 25 mil como garantia de futura indenização às vítimas. O próximo passo é a conclusão do procedimento policial para possível oferecimento de denúncia por parte do Ministério Público ao Poder Judiciário.

Desse modo, as jogadoras devem responder a uma ação penal para a realização do processo judicial, onde as provas serão analisadas e a culpabilidade será definida. As jogadoras estão sujeitas a uma pena de 2 a 5 anos e multa, devendo a pena ser ainda aumentada de metade, já que o crime foi cometido em concurso de duas ou mais pessoas, nos termos da Lei nº 7.716/89, que define os crimes de preconceito de raça ou de cor -, no artigo 2º-A e seu parágrafo único.

Qual é a diferença entre ofensa racista e o xingamento, ato comum no futebol?

Essa é uma questão muito relevante. O xingamento e a provocação são naturalizados no vocabulário do futebol e costumam ser relacionados à rivalidade esportiva. No entanto, a depender do xingamento, é possível se configurar crime contra a honra. A ofensa racista, em especial, jamais pode ser comparada com mera provocação, pois se trata de uma manifestação de preconceito e ódio racial que ataca a dignidade de pessoas com base na sua raça/cor, perpetuando estigmas e estimulando tratamentos discriminatórios.

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Como combater o racismo no futebol de forma mais efetiva no Brasil?

Combater o racismo no futebol requer uma abordagem multifacetada. Primeiramente, é essencial que as instituições esportivas implementem políticas de prevenção e de enfrentamento ao racismo com medidas de responsabilização definidas.

Como assim?

Dito de outro modo, é preciso pensar em alterações das normas esportivas para previsões mais explícitas e enérgicas de sanções não apenas para os esportistas e torcedores, mas também para os próprios clubes, como jogos sem torcida, perda de pontos, perda do mando de campo e rebaixamento automático do clube.

Tudo isso sem prejuízo da responsabilização criminal. No caso de torcedores que praticam atos de racismo, deve ser estabelecida a proibição de frequentar os estádios. Essa medida foi recentemente adotada na legislação brasileira que, nessa hipótese, prevê a proibição de frequentar, por três anos, locais destinados a práticas esportivas.

Como prevenir atos racistas?

A educação é uma ferramenta poderosa. Programas de conscientização sobre racismo devem ser integrados nas categorias de base e nas formações de atletas, técnicos e dirigentes.

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Outra medida fundamental é a promoção da diversidade nas instituições esportivas, não apenas entre os jogadores, mas sobretudo na arbitragem, nas comissões técnicas e nas cúpulas e cargos de direção de clubes e federações, assegurando que pessoas negras tenham voz e poder de decisão em todas as esferas.

Por último, é vital que a sociedade civil e os torcedores se unam em campanhas de combate ao racismo, criando uma rede de apoio e conscientização que incentive um ambiente mais inclusivo, equitativo e respeitoso, dentro e fora dos campos.

O futebol, sendo uma paixão nacional, tem o poder de transformar mentalidades. Portanto, a luta contra o racismo no futebol deve ser uma prioridade não apenas para os clubes, mas para toda a sociedade.

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