A vida do ex-jogador Adriano “Imperador” vai muito além do que ele fez nos gramados e de algumas histórias que circulam sobre ele na imprensa. Muitos não conhecem as dores que o menino Didico viveu na comunidade da Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro, como presenciar um assassinato aos 7 anos de idade, passar a conviver com o pai aposentado por invalidez por conta de uma bala perdida quando ele tinha apenas 10 anos, que o apelido dele no início da carreira era Pipoca, pelo fato de sua avó, Vanda, só ter dinheiro para preparar milho estourado, além do início precoce da descoberta do álcool, com 14 anos. Essas, além de muitas outras passagens desconhecidas, serão reveladas no livro de memórias Adriano – meu medo maior (Ed. Planeta), que entra no mercado editorial a partir desta segunda (11).
No livro todos vão saber o porquê das minhas decisões. Fiz muita coisa ‘errada’, vamos dizer assim. Nunca neguei. Tudo que conto no livro é a forma que eu enxergo os fatos.
Ex-jogador Adriano ao Estadão
Em entrevista exclusiva ao Estadão, o jornalista paulista Ulisses Neto, autor da obra, conta que passou os últimos quatro anos se dedicando a reconstituir a trajetória do ex-jogador, e que a ideia de a escrever surgiu em 2020, quando trabalhava em uma plataforma norte-americana que faz perfis de atletas do futebol. “Sempre quis escrever sobre o Adriano, mas a negociação era difícil, muito pelo fato que ele evita falar com a imprensa. Até que, em dezembro daquele ano, estava no Rio para um documentário sobre o Flamengo na Libertadores. Falei com a assessoria dele e houve um sim. Na primeira vez que íamos nos encontrar, ele cancelou e remarcou para 30 de dezembro. Por ser véspera de réveillon, achei que não ia dar certo outra vez, mas fui com dois profissionais até o hotel onde ele morava e esperamos por horas no saguão. Até que fomos chamados para subir para o quarto”.
Adriano afirma que prevê as histórias relacionadas ao futebol chamando mais a atenção dos leitores, mas indica que a história mais difícil para contar foi relacionada a seu pai. “Todo mundo sabe dos problemas que tive depois da morte dele. O que as pessoas não sabem é o quanto a vida da minha família foi impactada pelo tiro que ele levou quando eu era criança. Conto tudo que passei ao lado dele e da minha mãe. Falo sobre os ataques epiléticos que marcaram a minha infância e aconteceram até em vésperas de grandes clássicos na Itália. Falar disso mexe comigo até hoje. Meu pai era admirado por todos na Vila Cruzeiro. Dedico esse livro também à memória dele.”
A primeira memória que o são-paulino Ulisses tem daquele encontro é a de uma porta no fundo do apartamento se abrindo e dela surgir a figura de 1,89m de Adriano, que no ano de 2008 jogou como centroavante no São Paulo Futebol Clube. Ao longo de uma hora, o jornalista fez uma entrevista que trouxe vários pontos pouco explorados ou desconhecidos da vida do ex-jogador. Por conta da boa repercussão dela, que foi republicada até no Jornal Nacional, Ulisses foi convidado a escrever um livro sobre a vida de Adriano, que na época, tinha um contrato para publicação de uma editora italiana, e segundo o autor, não quis levar à frente o projeto e devolveu o adiantamento já recebido.
Dentadura no copo e amante de música romântica
Segundo Ulisses, a ideia central do livro, dividido em três blocos temáticos e 509 páginas, é apresentar Adriano em todas as suas camadas, não só com o jogador midiático de grandes clubes e da seleção brasileira, mas também, o homem nascido e criado na rua 9 da Vila Cruzeiro, comunidade localizada próxima ao bairro da Penha, no Rio e que segundo ele, é o “único lugar que consegue voltar sem errar”. A obra, escrita em primeira pessoa e em uma linguagem direta que faz com que Adriano converse com o leitor, traz histórias vividas ao longo de 42 anos, tendo como destaque as relações familiares e a forte ligação com a mãe, Rosilda, responsável por levar o filho para fazer um teste na base do Flamengo após comprar um título do clube, mesmo com todas as dificuldades financeiras, e a vó, Vanda, que viajava com o neto por boa parte do Rio de ônibus para que ele pudesse chegar aos treinos.
Por muitos anos, ela passava a carteira de idoso do marido, Luiz, na catraca do ônibus, para ela e o neto não pagarem a passagem. Dona Vanda, com poucos recursos, preparava pipoca de pós-treino para o neto, muitas vezes o único lanche possível. Segundo Adriano, em suas memórias, às vezes não dava nem para o pão com açúcar e que a avô gritava para todo mundo ouvir, “Adriano, vem comer pipoca!”. P*** m*… Na favela não tem perdão. Começaram a me chamar de Pipoca. No clube, era pior ainda. Eu via o olhar das mães. As risadinhas dos colegas. E tu acha que isso me abalava? De jeito nenhum. Foco na missão”, diz trecho da obra.
Outra pessoa importante na vida do ex-jogador é o pai, Miro, falecido em 2004. Segundo as memórias de Adriano, a ideia de escrever um livro sobre sua vida era uma forma de lidar melhor com a morte dele. Miro, que era líder comunitário e respeitado na Vila Cruzeiro, não gostava de ver o filho bebendo, hábito que o avô de Adriano tinha e que evoluiu para o alcoolismo. No livro, o ex-jogador conta que tomou o primeiro copo de cerveja aos 14 anos, e que costuma beber todo dia, preferindo um copo alto, muito gelo, metade de uísque barato e um pouco de guaraná zero. Miro, que não gostava de ver a cena, usava uma tática para tentar desencorajar Adriano e os amigos: quando eles se distraíam nos churrascos após as peladas, ele arrancava a dentadura e colocava no copo de um deles.
Nessa época, o pai já convivia com convulsões e uma bala alojada na nuca por conta de uma bala perdida que tomou quando Adriano era apenas uma criança. O episódio, assim como a aposentadoria por invalidez, fez com que a casa passasse a ser sustentada por Rosilda.
Outro fato curioso da vida de Adriano antes de se tornar o Imperador, apelido que ele detesta e não entende até hoje o porquê de tê-lo recebido na época em que jogou na Inter de Milão, nos anos 2000, é que ele é um amante de música romântica e quando entrava em seu quarto na rua 9 da Vila Cruzeiro, só queria fazer uma coisa: “Me esparramar no sofá-cama e ligar o rádio. Eu gostava de um programa que se chamava Good Times. Aquilo era lindo, cara. Só música americana romântica. Whitney Houston, Barry White, Lionel Richie”. Ele também gosta muito do Racionais MC e no livro, conta, em detalhes, suas primeiras aventuras sexuais, sendo a primeira dela, quando havia recém entrado na adolescência, com uma moça que tinha noivo. Eles transaram na cama dos pais dele após um dia de aulas na escola Monsenhor Rocha.
Eventos de lançamento
Na próxima quarta-feira (13) o Rio de Janeiro receberá o primeiro evento de lançamento do livro. Será às 18h, na Livraria da Travessa, no Barra Shopping, com a presença de Ulisses Neto e Adriano. No dia 28 deste mês, será a vez de São Paulo receber uma noite de autógrafos com os autores a partir das 18h, na Livraria Drummond do Shopping Conjunto Nacional.
O Estadão se antecipa e revela, em primeira mão, trechos inéditos da obra, que conta o episódio no qual a Inter de Milão, impotente diante das recaídas do ex-jogador, decidiu propor uma internação em uma clínica de reabilitação na Suíça especializada em tratamentos de alcoolismo, mesmo sendo um dos destaques da conquista do Campeonato Italiano na temporada 2005-2006.
Veja abaixo um trecho do livro de Adriano Imperador
“Eu chegava em casa e arrumava qualquer motivo para beber. Ou era porque meus amigos estavam lá, ou era porque eu não queria ficar no silêncio pensando merda, ou era para conseguir dormir. Deitava apagado em qualquer canto sem ter nem condição de sonhar. Muita gente usa o futebol como válvula de escape, eu precisava de um escape do futebol. Esse escape era a minha família. Meu pai. Quando olhei, ele não estava mais ali. Uma coisa levou a outra, e a bebida se tornou a minha companheira. Continuei chegando atrasado nos treinos. O clube tentava passar um pano na imprensa, eu recebia as multas no meu salário e nem me importava mais. Era tanta grana que eu ganhava, cara. A primeira multa dói. A segunda, tu fica puto. Na terceira, você já nem liga. E isso vale para os dois lados...
“Eu nunca quis prejudicar ninguém, isso é importante que fique claro. Tudo que fiz foi porque eu não consegui tomar outro caminho... Terminei a temporada acima do peso outra vez. Sofri com algumas lesões durante o ano. Minhas costas doíam. Doem neste momento, para ser sincero. Convivo com este problema. Não fui convocado para a Copa América de 2007. Tudo reflexo da vida que eu estava levando... O que eu não sabia é que a paciência de alguns dentro do clube já tinha chegado no limite. Os caras estavam se movimentando para me despachar, mano. Sério. Vieram com conversa de me emprestar...
“Comecei a sentir o cheiro de arroz queimado. Conversei com o meu procurador. A verdade é que eu não via saída para o que estava acontecendo. Até que veio mais uma paulada: o Mancini me deixou de fora da lista de jogadores da Inter que disputariam a Champions League. Falou na imprensa que o time tinha outras opções no ataque, eu não era uma delas... Saí do treino um dia e encontrei o meu procurador conversando com o Branca e com o doutor Combi. O clima estava pesado. “Adriano, o pessoal aqui está desconfiando de você. Estão preocupados com doping”, meu procurador disse... Saí do treino um dia e encontrei o meu procurador conversando com o Branca e com o doutor Combi. O clima estava pesado. “Adriano, o pessoal aqui está desconfiando de você. Estão preocupados com doping”, meu procurador disse...
“Estufei o peito e levantei a cabeça. “Boato de que, cara? Fala logo. Tu tá achando que eu uso droga?”, respondi olhando de cima pra baixo. A sobrancelha estava arqueada. “Adri, veja bem. Estamos preocupados com você, é só isso”, o doutor Combi falou. “Preocupados é o c... Faz a p...do exame, então. Pode fazer agora. Mas faz aquele do cabelo, que pega de vários meses pra trás”, eu falei. Bom, eu estava a um triz de perder a cabeça, cara. Foi quando o tal do diretor fez uma piadinha que caiu muito mal. “Poxa, Adri. Vamos fazer exame de cabelo contigo como se você é careca?”, ele falou. Malandro, minha vontade era de abrir a mão e dar uma chapada na orelha do filho da mãe. Sem sacanagem. Diz aí, Hermes. Conta pra eles como eu fico quando estou puto. Enfiei a mão dentro da calça. Agarrei meu saco. Arranquei um tufo de pentelho e por pouco não esfreguei na cara dele. Pode ligar para o Gilmar pra perguntar se eu tô mentindo. “Faz exame com esse cabelo aqui então, cara. Acho que vai ser o suficiente”, eu disse, balançando os meus p...no meio do CT...
“Não demorou muito pra eles virem me dizer que não tinham encontrado nada no meu corpo. Eu não precisava me preocupar com antidoping. Cê jura? A questão é que o clima já tinha azedado por completo... Minha depressão tinha chegado a um nível que eu não gosto nem de lembrar. Nada mais funcionava. Uma coisa leva a outra, negão. Pra jogar bem, eu precisava de sequência, e eu não tive isso. Para ter sequência, eu tinha que treinar bem, e eu não conseguia manter o foco por muito tempo. Para não beber e não ir para a balada, eu tinha que estar com a cabeça no lugar. E sem jogar nem fazer gol era impossível. Tá entendendo o tamanho da cagada? Uma coisa estava ligada a outra...
“Adri, antes de mais nada, eu quero te dizer uma coisa. O que está acontecendo com você não é motivo de vergonha. Já aconteceu e acontece com muita gente”, o Moratti disse daquele jeito sereno e elegante dele. “Eu quero te dar uma sugestão. Nós gostaríamos de te mandar para um lugar muito especial”, ele seguiu. Eu olhei para a minha mãe. Ela arregalou os olhos. Pegou na minha mão. “O doutor Combi vai te explicar os detalhes, para você entender. Ele vai te explicar sobre esse lugar que fica na Suíça. É uma clínica com discrição... Neguinho… eu não entendia aquela conversa. O que eles estavam pensando em fazer? Isso mesmo. Queriam me internar. Falaram que eu deveria passar um tempo numa clínica de reabilitação na Suíça. Eu estava deprimido e não tinha noção das coisas direito. Eu não entendia o que eles estavam falando. Que p...de ideia era aquela de me internar? “Eu não sou maluco, presidente. Com todo o respeito. Por que vocês estão querendo me mandar para um manicômio?”, eu falei. Comecei a me alterar na reunião. Aquela ideia era absurda. Tu já viu isso? Jogador internado em clínica de reabilitação? Puta merda...”
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