Aranha: ‘Sou mais lembrado pelo racismo do que pela humilde carreira. Isso não me deixa triste’

No Dia Nacional da Consciência Negra, o ex-goleiro relembra ataque racista, fala sobre a necessidade de se manter engajado e os percalços na luta pelo fim da discriminação no futebol; denúncias ‘explodem’ em 10 anos, segundo relatório

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Foto do author Rodrigo Sampaio

A vida de Aranha nunca mais foi a mesma após ele se levantar contra as ofensas racistas que sofreu de torcedores do Grêmio, em 2014, nas oitavas de final da Copa do Brasil. Na ocasião, a reclamações do então goleiro do Santos ganharam os microfones, resultando na exclusão do time gaúcho do torneio pelo Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD). No Dia Nacional da Consciência Negra, o ex-jogador relembra o episódio ao Estadão, fala sobre a necessidade de se manter engajado e os percalços na luta pelo fim da discriminação no futebol.

O episódio que a vida de Aranha aconteceu há pouco mais de dez anos, em 28 de agosto de 2014. O Santos vencia o Grêmio por 2 a 0 na recém-inaugurada arena do clube gaúcho, em Porto Alegre. Aos 42 minutos do segundo tempo, o goleiro se dirigiu ao árbitro Wilton Pereira Sampaio, alegando ter sido chamado de “macaco” por parte da torcida adversária.

Ex-goleiro Mário Aranha se tornou voz na luta contra o racismo após ataque discriminatório ocorrido há dez anos.  Foto: ALEX SILVA/ESTADAO

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Após o jogo, ele registrou boletim de ocorrência e os torcedores foram identificados. Contudo, os infratores ficaram sem julgamento. À época, o Ministério Público determinou apenas que eles deveriam comparecer a uma delegacia em dias de jogos do Grêmio 30 minutos antes da partida, durante um ano, para serem liberados somente meia hora após o término do jogo.

Apesar da punição branda, a postura de Aranha foi o pontapé necessário para a evolução de temas relacionados ao racismo no futebol nacional. “Depois de dez anos, avalio que tivemos um grande avanço. Não em solucionar ou diminuir os casos, mas na parte em que a vítima tem coragem de se manifestar, exigir e lutar por respeito. Até aquele momento, era um tema muito pouco falado, principalmente no futebol. Existe um receio muito grande por parte dos jogadores, diretoria, imprensa... A partir daquele momento não teve mais como falar naquele assunto.”

Ao fim daquela temporada, Aranha trocou o Santos pelo Palmeiras, clube pelo qual mal entrou em campo. Depois, passou por Joinville, Ponte Preta, onde voltou a atuar com regularidade, e pendurou as chuteiras no Avaí, em 2018, aos 38 anos. Se atualmente o jogador é considerado um símbolo na luta contra a discriminação no futebol, ele não tem dúvida de que denunciar os ataques tirou o foco do seu trabalho e o deixou marcado pela postura combativa. Ao mesmo tempo, o ex-jogador afirma que a situação não poderia ter sido diferente.

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“Não tem como você se posicionar e não sofrer qualquer tipo de retaliação. Os bons costumam ficar em silêncio ou acovardar, mas os ruins não. As ruins vão atrás, te perseguem na internet. Todo mundo que já se posicionou teve a sua carreira prejudicada de alguma forma”, comentar Aranha.

Hoje, sou muito mais lembrado por casos de racismo do que pela humilde carreira que tive. Isso não me deixa triste

“Fico sentido porque não é um assunto que eu gostaria de ter participado, me envolvido. Não é uma situação agradável, claro. O que me consola, é que isso foi bom para muita gente, porque era um tema quase proibido. Não existe uma maneira de solucionar um problema sem falar sobre ele.”

Aranha continuou falando sobre racismo, mas não somente por meio de entrevistas e declarações. Aos 44 anos, o ex-goleiro se firmou como escritor e tem dois livros de conteúdo antirrascita. Em 2021, ele lançou o Brasil Tumbeiro, em que reescreve a história dos negros no Brasil. No ano passado, publicou Patrocínio, que conta a história de José do Patrocínio, uma das principais personalidades do século 19 na luta pelo fim da escravidão.

Para Mário Aranha, como é chamado atualmente, um dos principais problemas para a falta de mais jogadores apoiando causas antirracistas passa pela falta de letramento racial dos atletas, em sua maioria de origem humilde. “A história do Brasil, de maneira geral, é complicada. O negro não conhece sua história e quando você não conhece o seu passado, você continua praticando os mesmos erros. Não é só no futebol, futebol é só um reflexo do que acontece na sociedade.”

O ex-goleiro reforça, ainda, a necessidade de os clubes desenvolverem os jogadores para além das quatro linhas. Ele atualmente faz sua parte dando palestras em clubes, escolas e instituições de ensino. Enquanto não surgem mais exemplos de jogadores com uma postura antirracista, como Vini Jr, ele pede medidas severas em casos de racismo, com punições não somente para os infratores, mas também para os clubes.

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“Acredito muito que precisamos preparar os meninos da base não só em campo, mas para uma fora das quatro linhas, porque amanhã eles serão os novos ídolos. Se a gente prepara os jovens para serem pessoas que vão passar bons exemplos, a gente começa a contagiar e mudar a cultura do futebol. A mudança só vem dos jovens.”

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“A punição do Grêmio acabou ficando de bom tamanho — até pelo placar da partida. Acredito que todas as punições são válidas. Se esperarmos a boa vontade de pessoas racistas, não teremos nenhum avanço. O clube também deve ser punido. Quando o agressor se sente confortável, ele vai continuar praticando a violência. Assim, os outros torcedores vão vigiar esses atos de desrespeito. É necessário para mobilizar mais pessoas.”

Casos de racismo ‘explodem’ em 10 anos

Segundo a décima edição do Relatório da Discriminação Racial no Futebol, foram identificados 136 casos de racismo no Brasil em 2023, além de outros 26 no exterior. O número equivale a 73% dos episódios discriminatórios. Somado a outras situações, como LGBTfobia, machismo e xenofobia, a contagem é de 250, a maior no período histórico. A grande maioria dos casos de racismo foram registrados dentro do próprio estádio, com uma menor parcela dos incidentes sendo relatados na internet e em outros espaços. O mesmo cenário ocorre no futebol internacional, com as arenas esportivas sendo o palco principal de atos racistas no futebol.

Em 2014, na primeira edição do relatório, foram levantados 25 casos de racismo no Brasil, e 11 no exterior. De lá para cá, houve um aumento de 500% nos registros. Apesar de o recorte indicar forte presença da violência contra a comunidade negra, Marcelo Carvalho, fundador e diretor executivo do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, explica que um dos motivos para o número inflado é justamente uma maior iniciativa por parte das vítimas para denunciar atos discriminatórios.

“Tinha-se uma ideia de que o racismo é o xingamento e o gestual de macaco, mas a sociedade vai percebendo que o racismo vai muito além disso. A própria falta de pessoas negras nos espaços e gestão e comando no futebol também é racismo. Outro ponto é entender o racismo recreativo. A piada deixa de ser piada quando tem conotação racista”, explica. “Esse debate só existe no País porque temos uma comunidade negra ativa.”

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Estruturado junto à sociedade brasileira, o futebol teve por mais de uma vez a função de promover o País como uma nação miscigenada. A primeira ocorreu na Copa de 1950, a estreia do Mundial em solo nacional. Naquele ano, três jogadores negros foram apontados como os vilões da derrota na final, por 2 a 1, para o Uruguai no Maracanã: o zagueiro Juvenal, o lateral-esquerdo Bigode e o goleiro Barbosa.

Apesar do número de casos no País ser alto, a reação da sociedade brasileira a episódios de racismo é menos tolerante do que em outras nações da América do Sul, como Uruguai e Argentina. Casos de racismo envolvendo torcedores em competições continentais, como a Libertadores e a Copa Sul-Americana se tornaram corriqueiras nas últimas décadas.

“Nos embates sul-americanos, e também com os europeus, é como se tivéssemos uma espécie de defesa nacional, mas projetamos essa imagem sem fazer a ‘lição de casa’”, comenta Marcel Tonini, doutor em História Social pela USP e pesquisador do Centro de Referência do Futebol Brasileiro, do Museu do Futebol. “Quando tivermos negros não apenas como roupeiros, massagistas ou treinadores de base e interinos, o caminho de ser treinador principal de um clube passará a ser uma possibilidade de carreira para negros que foram atletas. O mesmo serve para dirigentes em clubes e entidades e para redações de jornal. Que homens e mulheres negras ocupem cargos executivos, de gestão e confiança, e possam estar em espaços de tomada de decisão, no futebol e fora dele.”

Para Marcelo Carvalho, apenas punir desportivamente os clubes não vai ajudar a findar a questão do racismo no futebol, mas defende a necessidade de se discutir novos regulamentos para coibir atos discriminatórios de torcedores no continente sul-americano. “Os argentinos não enxergam o racismo como algo grave. Os regulamentos de competições nacionais e internacionais estão presos no que determina os três ‘passos’ da Fifa: avisar no sistema de som, parar a partida e, se não houver solução, interromper o jogo. Mas a regra fala sobre um coletivo entoando cânticos racistas. O que acontece na América do Sul são vários casos isolados. Então, não podemos trabalhar com a mesma lei. É preciso estabelecer regras olhando para América Latina, e não a Europa. Mas é preciso sentar e discutir, porque os argentinos estão entendendo a luta contra o racismo no Brasil como uma perseguição contra eles”, diz Marcelo.

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