“Na minha família, após o nascimento, o primeiro acontecimento na vida de uma pessoa é ela se tornar sócia do Barcelona. Temos oito cadeiras no Camp Nou e 18 associados do clube. Faz parte de nossa identidade, é o nosso orgulho”. Milhares de discursos como esse, feito pelo sócio do clube, Jordi Llobet, um catalão de 41 anos, se misturam à atmosfera da cidade encantada pelas cores azul e grená, do FC Barcelona.
As categorias de base do time catalão são responsáveis por grande parte desse orgulho. Assumir um cargo na comissão técnica da base, portanto, é algo quase tão importante quanto se tornar técnico da equipe principal. Ao se tornar auxiliar técnico do sub-19 do Barcelona, há cerca de um mês, quando deixou o cargo de técnico do sub-20 do São Paulo, Juliano Belletti, de 47 anos, ex-jogador do clube catalão, passou a seguir toda essa cartilha. Que, inclusive, prima pela discrição.
A modernização de La Masia, como a cidade das bases do Barcelona é chamada, foi entregue em 2011, com instalações que buscam adaptar junto à formação do atleta sua capacitação intelectual, pessoal e social também. O espaço custou aos cofres catalães cerca de 11 milhões de euros (aproximadamente R$ 55 milhões, na cotação atual). Com essa reformulação, o clube ampliou sua capacidade de abrigar atletas de 60 para 123 jovens esportistas, de diferentes modalidades, como futebol (masculino e feminino), handebol, basquete, futsal e hóquei sobre grama.
Os jovens são distribuídos em quartos com capacidade para uma e quatro pessoas, adaptados inclusive às características físicas de cada atleta. Nos quartos, além da cama, há armários, banheiro e uma escrivaninha para os estudos. Eles também têm aulas de reforço e espaços para diversão. O Barcelona diz se orgulhar do espírito familiar que coordena o espaço. As atividades são feitas prioritariamente em grupo. Do almoço aos treinamentos. Há horários a serem cumpridos, assim como uma rotina de afazeres.
É uma escolinha cujo modelo já está no futebol brasileiro. A diferença, talvez, seja seu peso. Um moleque que entra em La Masia entra também na mira não só do clube, mas de patrocinadores e agentes. Há olheiros espalhados pelo mundo, principalmente nas escolinhas. O Barcelona blinda todos eles. Não há gastos dos pais com os meninos. O clube cobre tudo. Mas isso também é uma praxe no Brasil. A Fifa libera contrato a partir dos 16 anos, por três anos.
Às 7h30, os jovens pegam o ônibus escolar rumo aos estudos e retornam ao centro de treinamento no início da tarde para o almoço. Depois de uma hora livre, há aulas de reforço de inglês em La Masia. Os treinos são realizados no fim da tarde, independentemente da modalidade. Única exceção são os alunos do Ensino Médio espanhol, chamado “bachillerato”, que têm as aulas à tarde e treinam de manhã. Depois das atividades esportivas, um tempo para diversão antes do jantar. Às 22h30, todos vão para os quartos para dormir.
A cada temporada, centenas de garotos entre seis e oito anos se candidatam a uma vaga em La Masia. Em 2021, pela primeira vez ingressou no espaço um grupo de garotas para a formação no futebol feminino. Para ingressarem no time principal, a idade não é necessariamente um pré-requisito. A partir dos 16 anos já é permitido jogar na equipe profissional. Há quem progrida mais rapidamente, enquanto outros chegam com 19 ou 20 anos. Alguns não chegam.
Atualmente, oito atletas do grupo principal vieram das “canteras”: Iñaki Peña (goleiro), Alejandro Balde, Ronald Araújo, Sergi Roberto e Eric García (defensores), Gavi, Oriol Romeu (meias) e Ansu Fati (atacante). Confira como é um dia comum em La Masia:
Barcelona trocou perfil “comprador” para se tornar formador de atletas
Se entre os anos 1930 e 1980, o Barcelona se baseava mais na contratação de grandes estrelas, como Fausto, Zamora, Evaristo de Macedo e Maradona, a partir dos anos 1990 as prioridades se inverteram. Em 2011, por exemplo, comandado por Tito Vilanova, o Barcelona entrou em campo com 11 jogadores formados em suas categorias de base. E venceu o Levante por 4 a 0.
Naquele ano, além dos títulos da Champions League e do Mundial de Clubes, após uma exibição de gala contra o Santos, que tinha Neymar, a equipe, sob o comando de Josep Guardiola, viveu um momento de êxtase. “Não importa quem seja o técnico, esse estilo de jogo não se negocia. O 4-3-3 se tornou um padrão. Os torcedores se orgulham muito desse conceito. Com ele, é possível fazer com que jogadores que não são os mais altos, os mais fortes, joguem com tanta intensidade e técnica que se tornam os melhores”, diz Llobet, que, além de sócio do clube, atua como membro da torcida do Barcelona, chamada de Penya, quando está fora do país.
Os loucos baixinhos: Messi, Xavi e Iniesta
O meio-campo formado por Busquets, Xavi e Iniesta, trabalhando para o protagonismo de Messi, se tornou o retrato fiel do trabalho que o clube almejava. Não à toa, em 2011, os três finalistas do prêmio Bola de Ouro da Fifa eram do Barcelona: Xavi, Iniesta e Messi, ganhador do prêmio. “A torcida os chamava de ‘loucos baixinhos’”, conta Llobet.
A partir da escola barcelonista surgiu o termo tiki-taka, em alusão ao toque de bola fluente da equipe que foi determinante também para que a seleção da Espanha conquistasse a Copa do Mundo de 2010 e fosse campeã da Eurocopa em 2008 e 2012. “A Federação da Catalunha também incorporou esses conceitos, que se tornaram referência para várias outras equipes na Europa”, observa.
Llobet mantém contato com dirigentes do clube e afirma que essa fábrica de talentos busca formar craques como Xavi Hernández e Andrés Iniesta e que, de uma maneira única, acabou revelando Lionel Messi. Messi chegou em La Masia aos 13 para 14 anos. “Sim, a ideia é revelar talentos, mas Messi foi fora da curva. Posso dizer, no entanto, que o Barcelona foi fundamental para que Messi desenvolvesse todo o seu potencial. Com toda a estrutura, ambiente cheio de amigos, diálogo e planejamento, ele pôde ser o que foi para o clube. Tenho muitas dúvidas se em outro clube ele conseguiria despontar dessa maneira”, ressalta.
Mas além dos três, uma série de craques fez história pelo clube desde os anos 1990. E os talentos foram cada vez mais se lapidando, desde ídolos como Guillermo Amor, Carles Puyol, Josip Guardiola e Sergi Barjuán, nos anos 90, até Gerard Piqué, Cesc Fábregas, Thiago Alcântara, Rafinha e Jordi Alba, entre tantos. Mais recentemente o fluxo de revelações prosseguiu com jogadores como Gavi (Pablo Páez Gavira), Pedri (Pedro González López) e Ansu Fati.
“Nesta semana, o último ‘canterano’ (termo que se refere à categoria de base do Barça) que encantou a torcida foi o Lamile Yamal, que deu um show no Trofeu Gamper contra o Tottenham. Ele tem apenas 16 anos e muitos recordaram a apresentação de um jovem chamado Lionel Messi no mesmo troféu em 2005″, diz o gestor financeiro catalão, Olivier Bourely, outro especialista em Barcelona, membro da Penya em São Paulo.
Os conceitos que regem as categorias de base do Barcelona atual tiveram início em 1988 com a chegada de Johan Cruyff para comandar a equipe principal. Ex-craque da Holanda, do Ajax e do próprio Barça, Cruyff, que permaneceu no cargo de técnico do Barcelona até 1996, ganhou autonomia para interferir na estruturação do futebol como um todo. Ele implantou um único modelo, 4-3-3, baseado nos conceitos do Ajax, para todas as categorias do Barcelona.
Mas, além dos números, conceitos de jogo e de comportamento também nascem na base, trabalhando com harmonia as contradições humanas. Buscando o equilíbrio dentro de fora de campo. Unindo valores distintos como disciplina e criatividade; força e talento; diversão e seriedade; espontaneidade e respeito.
Cultura e história integram a base do Barcelona
Desde o início dessa revolução barcelonista, estrelas continuavam a vir de fora, é claro, como Ronaldo, Ronaldinho Gaúcho, Rivaldo, Cocu, Deco e Eto’o. Mas outras, e em grande quantidade, se formavam lá nos campos de treinamentos da garotada, como se aquela parte do céu fosse uma constelação nascida e formada só na Catalunha.
Pelas ruas bem planejadas e arborizadas, as conversas entre a população local são nutridas por componentes como Masia, cantera, Barça, Gaudí, Miró, Catalunha e até, para muitos, Espanha. Futebol, cultura, tradição e política se misturam o tempo inteiro pelas esquinas, aglutinados pelo fenômeno chamado Barcelona.
O clube teve o poder de representar aspirações históricas, existentes antes de seu surgimento (1899), principalmente a partir da unificação dos reinos de Castela e Aragão (1492), originando a atual Espanha. A Catalunha fazia parte do reino de Aragão e sentiu-se prejudicada nesta nova configuração.
Cada um desses componentes não vive sem o outro. O Barcelona é uma parte e, ao mesmo tempo, o todo, com sua capacidade de alcançar o passado, atuar no presente e planejar o futuro. La Masia se tornou o termo que se refere às categorias de base do Barcelona. Assim como cantera. Masia, em espanhol ou catalão, é uma denominação que se refere a uma grande casa em uma fazenda. No local de treinamento dos meninos, há uma grande casa deste tipo, um local de convivência e hospedagem.
Já a palavra cantera, em espanhol, remete à pedra especial que é retirada de morros e elevações para estruturar obras como a Capela de Santa Marta, erguida com pedras específicas da região. Os meninos, nesse sentido, também são vistos como valiosos componentes que ajudam a construir toda a estrutura de formação de atletas.
A missão de Belletti no Barcelona
Pouco antes da pandemia, o Barcelona gastou muito em contratações, deixando de lado a cartilha de priorizar a base. Acabou tendo prejuízo por causa da ausência de público nos estádios e a redução de cotas de patrocinadores. Isso fez o clube buscar alternativas para ter dinheiro em caixa. Uma das principais foi repassar 25% dos direitos recebidos pelas transmissões da TV para o fundo de investimentos Sixth Street, que em troca ofereceu a verba de 519 milhões de euros (cerca de R$ 2,8 bilhões).
Com o início da entrada do capital, o Barcelona chegou a uma receita de 1,25 bilhão de euros (R$ 8 bilhões) nesta temporada 2022-2023, mas se prepara para ter gastos maiores entre 2023-2024, com a reforma do Nou Camp e a transferência dos jogos para o Estádio Olímpico de Montjuic.
Belletti, portanto, chega ao clube em um momento no qual as categorias de base precisam não só manter a tradição do clube na revelação de jogadores, como compensar recentes perdas com investimentos exagerados em atletas já consagrados. “Belletti terá que ser um profissional comprometido, comunicativo, dedicado ao desenvolvimento integral dos jovens jogadores e alinhado com a filosofia do clube. Sua experiência como ex-jogador de futebol de alto nível pode ser uma vantagem valiosa para inspirar os futuros talentos do Barcelona”, ressalta Bourely.
Contatado pelo Estadão, Belletti preferiu não dar declarações argumentando que, para os dirigentes do Barcelona, a exposição exagerada de alguém que forma os jogadores pode ser prejudicial neste momento. Além disso, Belletti precisará adquirir em pouco tempo um conhecimento avançado dos sistemas de treinamento do clube, segundo Bourely.
“Será necessário para Belletti um sólido entendimento e conhecimento sobre sistemas de jogo, posicionamento em campo, movimentações táticas e treinamento específico para diferentes posições. Sistemas de jogo que hoje chamamos ‘DNA Barça’, influenciados pelo estilo de jogo criado por Johan Cruyff”, completa.
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