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Time centenário da várzea, Santa Marina lutou até o fim antes de perder terreno de R$ 86 mi em SP

Clube teve de devolver espaço onde há um campo de terra e uma quadra coberta para multinacional em ação de reintegração de posse na Água Branca; atletas amadores e escolinha para crianças deixaram o local

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Foto do author Gonçalo Junior
Atualização:

Quando empurra o portão azul do número 883 da avenida Santa Marina, Francisco Ingegnere abre caminho para um passado que ainda pulsa. A sede do Santa Marina Atlético Clube, um time da várzea inaugurado em 1913, ganha fôlego novo com uma escolinha de futsal e as peladas do fim de semana no campo de terra, com gramas apenas nas lateriais. Tudo isso – passado e presente - acabou. A maioria dos campos de várzea estão desaparecendo. Em reportagem do Estadão, em Sorocaba, há um time que luta contra essa condição. e faz fama entre ex-jogadores profissionais.

O Santa Marina perdeu uma longa disputa judicial com a multinacional Saint-Gobain, dona da área. O Tribunal de Justiça de São Paulo negou recursos do clube contra a integração de posse do terreno pedida pela multinacional. O prazo para desocupação foi estipulado e cumprido. Havia chances remotas de um recurso ao Superior Tribunal de Justiça, mas o Santa Marina não conseguiu chegar até lá. A área de 9.236 metros quadrados, nas proximidades do campus da Unip, na avenida Marquês de São Vicente, vale aproximadamente R$ 86 milhões.

Santa Marina Atlético Clube enfrenta longa disputa judicial com a multinacional Saint-Gobain Foto: Felipe Rau| Estadão

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“Desde seu início, ele (o clube) dependia da liberalidade da Saint-Gobain no que se referia ao uso precário da área (em comodato) e se submetia aos interesses desta proprietária”, escreveu o desembargador Elói Estevão Troly, relator do processo na 15ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Como presidente do Santa Marina, Francisco, ao falar com a reportagem na época, em 2021, coçou os cabelos pensando no que iria fazer com uma das salas de troféus mais bonitas da cidade, além de paredes forradas com fotos que percorrem mais de 100 anos de história. Na primeira passada de olhos, o Estadão encontra um troféu grande com a data 1943 quase apagada. É o título da Liga Esportiva Comércio e Indústria (Leci). Uma foto de Pelé, com a camisa do clube sendo autografada, fica logo na entrada. Orgulho maior do time da várzea.

“Acho que vamos guardar os troféus em várias casas de família. Se ficar aqui, tudo vai se perder”, lamentou o dirigente, que também pretende pedir ajuda do Museu do Futebol, um dos espaços mais importantes da cidade para a preservação da memória do futebol de várzea de São Paulo.

Francisco Ingegnere, o Chiquinho, presidente Santa Marina, na sala de troféus do clube, na Água Branca Foto: Werther Santana / Estadão

Além do olhar perdido nas dezenas de taças, Francisco caminhava pelas páginas dos livros que contam a sua história e a do clube. Ele próprio está numa das fotos, com nove anos de idade. O menino de calças curtas, em branco e preto, observava o senhor de hoje, com a camisa do Santa Marina, a barba branca e a máscara colocada com cuidado para não embaçar os óculos.

O museu do Santa Marina prova que a memória da cidade, das pessoas, dos trabalhadores e dos esportistas está presente também nos espaços de lazer, na opinião da historiadora do Esporte Aira Bonfim. “É ali que as pessoas brincam, fazem churrasco e se reencontram com seu passado. Um espaço que oferece há tanto tempo um campo e uma quadra para todas idades guarda o passado esportista de São Paulo. A história do Santa Marina diz muito sobre a história da nossa cidade”, disse na época.

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Fundado em em 15 de agosto de 1913, o Santa Marina era um time de futebol amador de origem operária registrado pelos trabalhadores da antiga Companhia Vidraria Santa Marina, gigante da área de vidros domésticos e produtos de porcelana e cerâmica. Se bobear, ainda existem louças com a marcas Santa Marina, Duralex e Marinex na casa de muita gente. As histórias do clube e da empresa se fundem. Ela está localizado na Água Branca desde a sua fundação, no mesmo endereço. É ali que está aquele portão azul. Nos anos 1960, a Santa Marina se associou ao grupo francês Saint-Gobain, um dos maiores fabricantes de vidro plano no mundo.

Santa Marina é um clube centenário que chegou a tentar se profissionalizar em 1960 Foto: Werther Santana / Estadão

O espaço era uma opção de lazer e prática desportiva para os funcionários. Os trabalhadores viviam ali nos conjuntos residenciais Vila Nova e a Vila Velha. Nas horas vagas, jogavam futebol e praticavam boxe. Isso significa que Francisco não empurrava aquele portão sozinho. Ele tinha a companhia de pelos menos três gerações. O bisavô trabalhou na área de segurança; avô foi maquinista e o pai dele, Rafael Danilo, foi operador de máquina e chefe de fabricação. Todos moraram na Vila Operária.

O clube cresceu tanto que houve uma tentativa de profissionalização. Em 1960, o futebol chegou a disputar a divisão especial da Federação Paulista de Futebol, mas a campanha foi ruim. Não deu para se manter na elite. Recentemente, nomes famosos passaram por ali, como os ex-corintianos Lulinha e Fininho, Rodrigo Taddei, ex-Palmeiras e Roma, e o atacante Morato (Vasco).

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O Santa Marina também fez sucesso no boxe, ciclismo, halterofilismo, basquete, vôlei e judô. Foi referência no futebol de salão, onde foi bicampeão estadual e tricampeão municipal na década. Vários jogadores se transferiram para o Palmeiras, Ypiranga, Paulistano e Nacional.

Antes de fechar, o clube tinha cerca de 60 alunos na escolinha de futebol. Todo eles sonhavam com a carreira de atleta. Antes da pandemia, o número era de 120. O clube também cedia o espaço para ações sociais que beneficiavam seis abrigos de crianças em situação de vulnerabilidade. Nos finais de semana, jogavam ali equipes amadoras, como o time do Garrafão, só de veteranos. Cuidam do clube o próprio Francisco, Rose, sua irmã, e Carlos do Nascimento, um dos diretores. “A gente vai envelhecendo de dor. É muito triste ver que tudo isso vai se perder. Eu nasci aqui”, diz Carlos, que trabalhou na ferramentaria da empresa entre 1963 e 1976.

Os irmãos Francisco e Rose Ingegnere (lado direito) acompanhados de Carlos do Nascimento no campo do Santa Marina Atlético Clube. Foto: Werther Santana / Estadão

A exemplo do que acontece com a grande maioria dos clubes amadores em São Paulo, a situação financeira é difícil. A mensalidade da escolinha é de R$ 60. O campo é alugado por R$ 400 mensais. Os custos, com água e luz, giram em torno de R$ 1.200. Eles sobreviviam com dinheiro contado.

O contrato de comodato, que permitiria o uso do terreno por mais dez anos, foi assinado em 2009. O advogado Caio Marcelo Dias, representante do clube, afirmou que Francisco não era assistido por advogados e que foi coagido indiretamente sob o risco de demissão - ele ainda era empregado registrado da empresa. Depois de três meses, o advogado afirmou que foi demitido da vidraria. “No meu entendimento, o clube já teria direito adquirido de usocapir após 15 anos de uso mansa, pacífica e ininterrupta. Pouco importa se foi assinado tratado de comodato”, diz o especialista do escritório Dias Advocacia, antes de os portões se fecharem de vez.

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Carlos do Nascimento, diretor do clube, analisa um troféu de 1942, um dos mais antigos do Santa Marina Foto: Werther Santana / Estadão

A empresa pediu a reintegração de posse do terreno em duas ocasiões. Uma foi negada, a outra teve sucesso. A 2ª Vara Cível do Fórum da Lapa estabeleceu 120 dias para a desocupação voluntária do terreno.. O prazo terminou dia 7 de agosto de 2023.

Diana Mendes, pesquisadora do Museu do Futebol, avaliou que uma das saídas para evitar disputas por espaço como essa é o envolvimento do poder público. “A gente precisava de uma jurisprudência para que questões assim, como a importância cultural e histórica de um clube de várzea, pudessem ser relevantes numa disputa judicial”, opinou.

Para a especialista, o debate deveria ser ampliado. “Qual é a importância desse clube para a cidade de São Paulo? A história do clube não é só dele, pertence a todos. Pesquisadores sobre a história do futebol de várzea deveriam ser ouvidos nessas disputas. Essa seria uma solução de mediação”, entende a especialista. Mas nada disso foi feito e os ‘varzeanos’ tiveram de deixa o local. O mato cresce onde é o campo e nada foi feito desde então. O local está abandonado.

A visão está alinhada à percepção de Aira Bonfim. “A especulação imobiliária apaga a diversidade de ocupação numa cidade. Um campo não é um só um campo. Estar no Santa Marina é um sentimento complexo. A defesa desse espaço significa que podemos construir empreendimentos imobiliários, mas também espaços mais acessíveis e que envolvam diferentes ocupações, principalmente numa região privilegiada como aquela”, opinou.

OUTRO LADO

Em nota  enviada ao Estadão, a Saint-Gobain informou na época que “sempre esteve disponível e aberta ao diálogo com o Santa Marina Atlético Clube a fim de encontrarem, em comum acordo, a melhor solução para ambas as partes em relação ao imóvel”.

Embora a companhia afirme que não comenta processos judiciais em curso, o grupo esclareceu que o imóvel, que pertence ao Grupo Saint-Gobain, era utilizado pelo Clube via um Contrato de Comodato que expirou em 2019. “Ao longo desses anos, a empresa sempre atuou de maneira transparente junto às lideranças do Clube para buscar alternativas na resolução do tema”, disse outro trecho do documento. No final, o Grupo Saint-Gobain “reiterou seu empenho na solução da questão da melhor forma possível”. Questionado sobre o destino da área, a multinacional afirmou que “o terreno está sob análise para possibilidades futuras, mas ainda sem definição”.

Rose Ingegnere, uma das administradoras do Santa Marina, no memorial do clube Foto: Werther Santan / Estadão
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